quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A casa


A casa foi demolida.

Quem se importa?

O último a sair foi o tio inventariante quem cuidou do alvará de demolição.

Lá ficaram, abandonadas, as histórias que os fantasmas vão contar, cada qual num canto.

Talvez reunidos, orquestrando estranhas liras, as rabecas de seus rancores e mágoas, reclinados em invisíveis cadeiras de balanço daquela que foi a soturna sala de estar.

Para onde um menino correu a se esconder atrás da porta, donde viu o pai desertor ir embora para sempre e a mãe enlouquecida arrancar os cabelos e atear fogo às roupas naquele dia eternamente fechado em segredos de uma história por contar.

O tempo se encarregou de tudo a seu modo.

Tomou conta do jardim, deixou sentimentos encanteirados em fundas raízes de flores rasteiras e miúdas pisadas por um cão indócil.
    
Quando cheguei para ver, a casa era ruína.

Era uma hora sombria, engastada em silêncio e pó dos monturos.

De longe vi a casa.

Era como se ela me esperasse, eu senti.

Para um acerto de contas já impossível.

O espólio da saudade e do arrependimento tardio – se havia, se houve – deixou um inventário de perdas. E danos a que muita lágrima não deu alívio nem liquidou as faturas dos remorsos encortinados sob os gentis retratos do salão, as cabeças baixas à mesa do jantar, a tortura das convenções e etiquetas.

Escombro, poeira, restos amontoados no chão.

A fachada ainda de pé, esperando, como todas as fachadas se mantêm e esperam.

Alguma alegria contida, algum farrapo de sonho outrora encarcerado, o choro e as vozes abafadas dentro da casa, nas paredes, nos quartos, agora livres de exortações e reprimendas, senões e sinas. Dos atavios da família desfeita.

Quem não foi afligido?

Ninguém ali foi feliz.

Se foi, agora o que importa, quem vai dizer?

As lembranças pesam sobre todos os sobrevivos como vigas mal amarradas de um teto prestes a desabar, a que seríamos obrigados a suportar para sempre.

Mesmo demolida não abandonamos a casa.

Nem ela a nós.

Tem vida própria e em nós vive.

Com tudo o que de nós ali abrigamos e o que de resto restou.

Afastei-me devagar, o olhar caído.

No meio de tudo descobri os cacos de um espelho.

Que refletiam meus olhos exatamente quando me perguntei quem me odiava tanto.

2 comentários:

  1. Olá Juarez,
    Agora sim, estou seguindo o seu blog.
    Mais uma vez,parabéns!
    Sucessos sempre!
    Mateus

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  2. Olá, Mateus.
    Obrigado e seja sempre bem vindo.

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