terça-feira, 26 de abril de 2011

Os cus de Judas

A ONU acusa o Brasil de desalojar pessoas à força por conta de Copa e Olimpíada, informa a Agência EFE, de Genebra.

A relatora especial da ONU para a Moradia Adequada, Raquel Rolnik, acusou as autoridades de várias cidades-sede da Copa do Mundo e do Rio de Janeiro, que receberá a Olimpíada, de praticar desalojamentos e deslocamentos forçados que constituem violações dos direitos humanos.

Os casos denunciados se produziram em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Natal e Fortaleza.

A relatora explicou que já foram feitos múltiplos despejos de inquilinos sem dar às famílias tempo para propor e discutir alternativas. Sem dar atenção suficiente ao acesso às infraestruturas, serviços e meios de subsistência nos lugares onde essas pessoas foram realojadas, afirmou Raquel.

“Também estou muito preocupada com a pouca compensação oferecida às comunidades afetadas, o que é ainda mais grave dado o aumento do valor dos terrenos nos lugares onde se construirá para estes eventos”, acrescentou.

A preocupação da ONU é garantir que os dois megaeventos promovam o respeito pelos direitos humanos e deixem um legado positivo no Brasil (veja matéria na íntegra, aqui).

Convenhamos, essa preocupação com Direitos Humanos é coisa para ONU ver. A PACóvio não interessa. O interesse é fazer a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A que custo social, humano e financeiro não conta.

Quer dizer, o financeiro conta. Para a especulação imobiliária e a meia dúzia de empresários e políticos endinheirados que mais endinheirados ficarão mandando para os cus de Judas essa gentalha que teima ocupar áreas nobres no espaço do circo olímpico. Um inconveniente à execução das obras e ao ganho de poucos, contra o sacrifício de milhões, por causa desses eventos de tamanha magnitude, importância e necessidade para quem não tem colírio.

Essa ONU, em cujo Conselho de Segurança o Brasil pleiteia assento, tem de parar de se meter na copa e na cozinha dos outros. Em República Macunaíma é inútil argumentar: o país não se torna desenvolvido porque realiza olimpíada e copa, e sim porque é desenvolvido pode até dar-se ao luxo de sediar os torneios. Mas é preferível encher de orgulho o rabo que de feijão o pandu e de juízo a mente. Como não há direito humano que um trator não remova, nem juízo ou engenho a elidir as manobras das políticas circenses, fácil é dar ao quinto dos infernos a fachada de paraíso para ganhar freguesia eleitoçeira.

Então, que venham as grandes obras, que venham! Não a diminuir a desigualdade, mas acentuar as diferenças entre quem pode e quem se... sacode.  Quem me disse isso foi um operário das pirâmides ao tempo dos faraós, como era mesmo o nome dele? Ah, sim, Ninguém. E morreu contemplando a pujança sem ter onde cair morto.

sábado, 23 de abril de 2011

Do Calvário, da Vida e dos Homens

Cristo de S.João da Cruz (Salvador Dali,1951)

Cada vez me convenço mais que a Vida de Cristo constitui o paradigma profético da nossa própria vida, de homens...

Num dia, fazemos milagres, caminhamos sobre as águas, convidam-nos para almoços e jantares, acorrem basbaques de todos os lados para nos verem e maravilhar-se. No outro, tudo se altera e distorce: como num caleidoscópio infernal, damos conosco de madeiro às costas, arquejando ao fundo duma encosta íngreme, ninguém nos conhece, todos nos cospem, e flagelam-nos por ali acima, até ao cume sangrento onde, por vil embirração, cismam de nos crucificar.

Meio estarrecidos, perplexos, perscrutamos o chão que parece agora fugir-nos e conspirar contra nós. Afinal, o mel foi só para afinar o paladar para o sabor do fel?!...

Meio atordoados, interrogamos, com desespero, o céu:

"Vou ter que beber este cálice?..."

E o céu, dum azul imenso, misterioso, profundo, responde:

– "Vais!..."

E é nesta altura, para lá do terror e da esperança, que o homem, se tem um dragão dentro dele, contém as lágrimas, esquece as feridas, fita com desprezo a maralha e clama:

"Então brindemos: À Nossa!..."

À nossa: à indiferença do Céu e à dor na Terra.


(Do Blog Dragoscópio, Escrito no Nevoeiro, 02.04.2010)

domingo, 17 de abril de 2011

Porque te vas (Cría cuervos...)

O Aldaz Navegante


– O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. Disse: – “Vocês vão se esquecer muito de mim?”

O navio dele, chegou o dia de ir. O Aldaz Navegante ficou batendo o lenço branco, extrínseco, dentro do indo-se embora do navio. O navio foi saindo do perto para o longe, mas o Aldaz Navegante não dava as costas para a gente, para trás. A gente também batia os lenços brancos. Por fim, não tinha mais navio para se ver, só tinha o resto de mar.

Então, um pensou e disse: – “Ele vai descobrir os lugares, que nós não vamos nunca descobrir...” Então e então, outro disse: – “Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca vai voltar...” Então, mais, outro pensou, pensou, esférico, e disse: – “Ele deve de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber...”

(João Guimarães Rosa, Primeiras Histórias, in Partida do Audaz Navegante)

terça-feira, 12 de abril de 2011

Êta língua difícil...

Amá-la ou Amar-te?

O marido, ao chegar em casa no final da noite, diz à mulher que já estava deitada:
– Querida, eu quero amá-la.
A mulher, que estava dormindo, com a voz embolada, responde:
– A mala... ah não sei onde está, não! Use a mochila que está no maleiro do quarto de visitas...
– Não é isso querida, hoje vou amar-te.
– Por mim, você pode ir até Júpiter, até Saturno, desde que me deixe dormir em paz...

domingo, 10 de abril de 2011

O mais estranho milagre

Todo mundo é chegadinho a um milagre, embora por conta do desengano, do perigo ou da desesperança nem todos creiam em milagres. Mas espera-se que aconteçam. Pode ser o prêmio da loteria. A promoção no emprego ou aquele aumento salarial. A celebridade instantânea por causa de uma aparição na TV. O carro novo. A casa própria. O amor que despenca de paraquedas no meio da avenida para a vida toda. Ou a árvore da felicidade que de repente, não mais que de repente brota de preferência carregada de frutos no jardim.

Não falo dos milagres da cura, que esses operam em língua estranha, particular, muito íntima, aprendida num oásis oculto da mente e da força humana, só entendível na mais profunda misericórdia e compaixão.  

Nem digo dos milagres da fé, embora não falte igreja nem atravessadores a contar o milagre e entregar o nome do santo, que esses andam aí tão esparsos porque nem de longe concorrem com as razões do interesse, do egoísmo, do orgulho ou da inação. E me fazem questionar, com argumento infantil, se quem criou a luz foi Deus ou Thomas Edison. Ou se Jesus fazia tantos milagres nos tempos bíblicos por que agora não faz mais.

Falo, sim, daqueles milagres aos quais não se dá a devida atenção e, corriqueiros, súbito estão diante de nós, se não por essência da própria fé ou do amor, do esforço e do mérito.

Falo desses milagres cotidianos, que ignoram a pressa e são por ela ignorados. Mas que não derrogam leis da natureza, do universo ou da vida como um acontecimento fantástico. Nem passam por cima de pessoas e coisas, e nos devotam às ações possíveis. Uma mesa posta com o suor do trabalho. Um abraço. Um carinho. Uma presença querida. Um ombro amigo. Uma noite de tranquilo e justo sono na certeza do dever cumprido. Um caráter animado pela esperança de que dias melhores virão. O sol da manhã.

Há muito deixei de duvidar dos milagres. De aguardar também, menos por desejá-los do que por neles crer. Eles que me esperem. O milagre, sei, não é aquilo que está por acontecer, mas o que já aconteceu e nem sempre se vê, vejo. Que não vem embrulhado como presente, porque são o próprio presente e dele feito.

Falo daqueles milagres visíveis em seus efeitos sobre nós, aqui e agora. Do milagre de tudo que vivi, se isso me fez melhor do que fui e, conquanto benefícios materiais não me traga e dividendos renda, me devolva senão o contentamento, a consciência de me reconhecer e me admitir melhor.

Desses pequenos milagres falo, não daqueles que me opõem certezas e dúvidas porque a minha esperança não passou de uma fé que, penso, não deu certo. Que era insuficiente. Ou por ser-me desconhecida e, mais, porque a mim mesmo não me fez conhecer.

Nada de numinoso, a desafiar explicações, declarar profecias ou enigmas, senão que de toda e qualquer experiência profundamente individual eu perceba a eterna novidade da vida, vivida. Mesmo sem a cor do extraordinário ou a assinatura do divino.

Nada que me seja estranho. Desse milagre falo, nele acredito, espero. Não há milagre mais estranho do que essa espera a me arrebatar os dias sob meu olhar horizontal.