sábado, 28 de maio de 2011

Murmúrio


quando duas árvores nascem muito juntas, pode-se saber que há projetos.

talvez elas queiram construir uma nova brasília, pensem num novo protótipo de elevadores ou planejem um engenho de açúcar.

o cauteloso é que o encontro entre as duas copas é quente.

e num ritmo acelerado, ritmo que os pés não conseguem criar, e mente nenhuma pode conceber em uma vida, elas cantam caladas. elas não poderiam dizer.

(AMANDA ALVES DE ANDRADE E AGUIAR)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Biblioburro

O comovente trabalho do professor colombiano, Luis Soriano, que percorre vilas e campos, em lombo de burro, para ler histórias e ensinar crianças

sábado, 14 de maio de 2011

Dos contos do reino

Cegos guiando cegos (Pieter Brueghel, 1568)

O mérito da Rainha de Jabá, se disso pode-se falar, é mérito algum haver no que, de novidade, nada faz no reino que por obra e graça do acaso já não existisse ou por necessidade o povo já não houvesse criado. A exemplo do toma-lá-dá-cá, dos passa-moleques e dos pode-e-não-pode, a bustarella das cordialidades. A driblar o arrocho e a economia de mercado, cuja tendência é mesmo se acomodar mais por causa das leis do tempo e da força dos costumes. Jamais em tempo algum por causa das palpitações coronárias ou de platitudes majestáticas.

Por isso a Rainha Muda é de uma eloquência sem par: se nada diz é porque nada é o seu falar.

Entrementes, por artes e ofícios dos alquimeristas que tanto fazem transbordar quanto esvaziar os alambiques no reino da eterna pifa, e quanto mais a esvaziar os cofres da Corte, vivem neotontos súditos a dizer que sim, ó, sim, o reino agora é um outro mundo. Onde nem miséria há, porque a memória vai pela cumplicidade das vistas enganadas.

Sim, ó, na realidade está muito melhor. Instalada nas ruas, mercados, tabernas, praças, povoados e cercanias do reino, tal realidade agora se reconhece porque no reino, de fato, já se bebe muito mais. Então maior parece o progresso, quanto mais a turbamulta se aproxima da ilusão e mais se distancia da crítica. A crítica, essa dona que anda nua em público, por isso faz muita gente tapar os ouvidos para não ver. 

Como poucos lucram mais e muito com a cegueira, a debilidade e a demência coletiva, tanto e de tal modo fazem a Rainha e seus alquimeristas crer que o melhor de agora é o que antes qualquer abestado se negaria a admitir levando a mão em seu arrombado bolso: os altos gastos da Corte e os ainda mais altos impostos regiamente cobrados e pagos são do interesse público. Para o bem estar geral e a prosperidade do reino na vida que se vive na fantasia dos crediários.

Tanta é a picaretagem e mais a picardia que fariam até um Santo Antão entregar os pontos e cair na farra, descrente de combater os demônios, se vivo fosse quem de crendices nunca viveu.

À exceção dos muito ricos que muito mais ricos estão, porque nunca se fiaram nas carochinhas da promissão, mas no juro das promissórias, o resto vai. A farsa prospera sobre o bronco das plateias.

Mas a Rainha de Jabá garante, trancada em sua torre imaginosa, e dão seus escudeiros aval: agora até os pernetas dançam a balalaica ao som do chincalho e da charanga. E pernetas demais houve, tolos míopes, que jogaram para o alto suas muletas para melhor enxergarem aquilo que tanto otimismo não lhes permite, no embalo, ver: a realidade é que cada um cai para um lado.

Muita gente caiu nessa.

Moral da história: salvação de necessitado é a muleta do desespero.

domingo, 8 de maio de 2011

O deserto de Tepântar

RABINDRANATH TAGORE


Não sei que horas são, mãe.
Mas a luz do dia vai escurecendo no céu,
E não estou achando nenhuma graça no meu brinquedo;
Por isso vim para junto de ti.

Hoje é sábado, o nosso dia santo.
Deixa o trabalho, mãe; senta-te aqui junto à janela
E dize-me onde é o deserto de Tepântar,
do conto de fadas.

A névoa da chuva cobre o dia de um a outro lado.
Os relâmpagos arranham o céu com suas unhas de fogo.
Estala o trovão ribombando pelas nuvens.
Como eu gosto de ter medo, então, e de agarrar-me a ti.

Quando a chuva goteja horas nas folhas do bambual
e as janelas estremecem e rangem às rajadas do vento,
eu gosto de ficar no quarto sozinho contigo, mãe,
e ouvir-te falar do deserto de Tepântar, do conto de fadas.

Onde é que ele fica, mãe?
Na praia de que mar?
Ao pé de que montanha?
No reino de que rei?

Não há balizas que dividam as terras,
nem caminho que leve o vilão a sua vila,
nem vereda pela qual a mulher que cata lenha
possa levar a sua carga da floresta ao mercado.

Eu vejo daqui o deserto de Tepântar: a areia sem fim,
sobre a areia, manchas de relva amarela,
e só uma única árvore,
em que fez seu ninho
o casal de velhos pássaros encantados.

E eu imagino que, num dia nevoento como este,
o filho moço do rei vai atravessando o deserto,
montado num cavalo cinzento,
em busca da princesa
que está prisioneira no palácio do gigante,
em meio do lago misterioso.

Quando a cerração da chuva descer do céu longínquo
e o relâmpagos explodirem com acessos de dor,
ele há de lembrar de sua mãe infeliz,
abandonada pelo rei,
varrendo as cocheiras, e enxugando as lágrimas
enquanto ele cavalga pelo deserto de Tepântar,
do conto de fadas.

Vê, mãe, já está quase escuro o dia que se vai,
e não se enxerga um viajante, além, nas estradas.

O pastorzinho volta cedo do campo,
os trabalhadores deixam os serviços e, sentados,
abrigam-se sob o beiral das choupanas,
espiando a carranca das nuvens.

Eu também
deixei todos os meus livros na estante, mãe;
não me perguntes pelas lições agora.
Quando eu crescer e for grande como papai,
aprenderei tudo que é preciso aprender.
Porque hoje, mãe,
tu vais dizer-me onde fica o deserto de Tepântar,
do conto de fadas.

domingo, 1 de maio de 2011

Totó das tetéias

LEILA JALUL

“Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação.” Isso aí aspeado é do Fernando Pessoa. Fiz questão de colocar essa afirmação logo na abertura de meu livro Suindara, talvez antevendo que as firulices que tenho rememoriado seriam postas em dúvida.

Li a palavra TRIBUZANA no texto do amigo Eurico, o homem de Tabuí. Era o mote que faltava para falar de mais uma, a do Totó das Tetéias. Faz parte do meu show, antes de começar a escrever, olhar-me no espelho onde não mais me enxergo (tenho problemas com as vistas), e, tal qual adolescente, ficar a procurar um cravinho aqui, uma espinita ali. Tudo na base do tateado. Cutucando, cutucando, as palavras pelas quais procuro, por dizerem, ao pé da letra, sobre o que quero escrever, vão surgindo, surgindo, até poder sentar e armar a escrita. Tenho em minha mente algumas palavras que não dispensarei em textos futuros. O som delas é bonito demais da conta. Espiem estas: osmose, medieval, emblemático, incipiente, circunspecto, arrebol, chauvinista, exógeno, caudaloso. Não são lindas? Tem outras também lindas e insinuantes, mas não quero desgastá-las nas citações. O segredo, segundo dizem, é a alma do negócio!

Totó das Tetéias era sargento do Batalhão de Engenharia, num distante pedaço da Amazônia. Moreno, olhos verdes, pele curtida de sol, era chegado numa tribuzana. Pronto! Aqui começa a história propriamente dita.

Sabedor de sua beleza, Totó tinha o péssimo habito da gabolice. No mercadão Marechal Rondon, todos os dias, juntava-se aos bruacos aposentados e de paus murchos, só para contar sua última aventura com as mulheres. Toda mulher que "comia" era representada num colar de botões que pendurava no pescoço. Não era um colar qualquer, com qualquer botão. Não. Tudo tinha ordem, cor e simbologia. Um botãozinho cor de rosa, por exemplo, queria dizer que pegou uma tetéia virgem. Um botão marrom, grande, queria dizer que pegou uma coroa desgastada e "arrombada", como fazia questão de enfatizar. E ali, no senadinho dos aposentados babões, ia explicando, com riqueza de detalhes, suas orgias com as belezuras dependuradas no pescoço.

 – Ó – dizia –, esse aqui é da Tonha Nepomuceno. Comi ontem.

Uma trabalheira danada. Estava para pedir uma talhadeira e um auxiliar para ajudar na tarefa. Com 19 anos, aqui por essa bandas, não existe mais esse negócio de virgem, mas era, era de verdade! Dureza, senhores! Dureza de vida!

– Ó – continuava –, esses dois aqui, representam mãe e filha. Foi na semana passada. Não tinha contado para vocês por achar que duvidariam. Esse é da Maria Lopes, que foi mulher daquele turco safado daquela merda de loja na ladeira de Nossa Senhora da Glória. E esse, pequenininho, é da Marilúcia, a filha dela com pai desconhecido. A menina não é do turco, de jeito e maneira. Se fosse, a deixaria pra depois, sabe como é? Quem tem aquilo, tem medo! Não é que tenha medo, mas, é melhor deixar quieto, principalmente com gente que a gente não conhece a ruindade. Estou certo?

A moçada aposentada ia ao delírio quando Totó descrevia umas posições quase tipo missão impossível. Vez por outra, Tenório do Boi levantava para verter água, não sem antes pedir:

– Agüenta um tempo, Totó, que volto num relâmpago!

Ninguém reparou nos olhos do Miguel, da banca de abacaxi. Eu, sim. Ninguém se aluiu que ele deu uma saidinha e voltou, sem nada falar. Eu, sim. Fazia de conta que não estava ouvindo nada, mas vi uma coisa estranha no brilho dos seus olhos. Coçava o bigode, alisava a faca, cortava uma rodela de abacaxi para a freguesa, vendia, recebia, passava troco e sentava.

Na volta de Tenório do Boi, devidamente mijado, a conversa de Totó das Tetéias voltou ao ponto onde havia sido interrompida.

– Pois é, primeiro dei um trato na Maria Lopes. A véia tava perfumadinha, gostosinha e arrumadinha. Teria ficado com ela a tarde inteira, mas, o diabo do cramulhão atentou e ela teve que sair, para entregar umas costuras. Fiquei deitado e aí, sem conter minha bicha quieta, lembrei da menina. Fui lá e...

Entrou nos detalhes, mas não vou aqui repetir. É nauseabundo.

Olhei pro Miguel, mas ele desviou e apenas puxou um fôlego comprido. Na época, a mania dos valentões era assistir Ringo e os dólares furados. Qualquer banana com vontade de ser macho vivia a repetir: My name is Ringo!

Terminada a conversa, já pelas 9 da manhã, Tenório pergunta se não tinha medo de bolinar menor.

Tenho nada! Se eu não comer, a terra come! Afinal, amigo Tenório, my name ís Totó das Tetéias.

Nisso, levanta-se Miguel. Pé ante pé, caminha até onde está o morenão e, de chofre, pergunta:

– Como é teu nome, cabra?

– Totó das Tetéias.

– Era.

Dois estalidos secos. Um tiro no peito e outro no pescoço. Totó caiu já do outro lado das trevas, arrodeado de botõezinhos e botõezões. Miguel acha o de Marilúcia, sopra, beija, limpa na perna da calça, guarda-o carinhosamente no bolso da camisa suada e sai, como se não tivesse acontecido nada.

Tudo foi verdade, e dou fé. Eu estava na cidade e fui a última freguesa que comprou dois abacaxis de puro mel, depois da prova servida na pontinha da peixeira afiada e colocada, com ternura, em minha boca.

(LEILA JALUL é escritora acreana, autora dos livros Suindara, Absinto Maior e Das Cobras, Meu Veneno.)