domingo, 27 de março de 2011

Quem marcha diferente ouve outro tambor


Desobediência civil é qualquer ato ou processo de desafio público a uma lei ou medida decretada pelas autoridades governamentais estabelecidas. É ação premeditada, entendida pelos seus protagonistas como ilegal ou de legalidade controversa. A desobediência como tal se assume e se mantém em vista de fins públicos precisos, através de meios cuidadosamente escolhidos e limitados.

A noção de desobediência civil pressupõe a transgressão de uma norma, mais caracteristicamente, uma norma legal. A desobediência pode ser ativa ou passiva, pode consistir em fazer o que é proibido ou em não fazer o que é exigido. Em opor-se à lei quando injusta a lei. Ou se cuidam os senhores das leis desdenhosamente de exigi-las mas desregrá-las e descumpri-las como se acima delas fossem eles as almas mais livres.

Essa atitude crítica propõe o filósofo americano Henry Thoreau, autor do livro Desobediência Civil, espécie de manual de anarquismo pacífico, breviário do cidadão contra a tirania dos poderes constituídos, que exerceu forte influência sobre o conceito de resistência pacífica desenvolvido por Gandhi. A obra serviu também de inspiração ao movimento hippie.

Thoreau questionava:

“Deve o cidadão desistir de sua consciência, mesmo por um instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por que então estará cada homem dotado de uma consciência?

Não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo. Costuma-se dizer, e com toda a razão, que uma corporação não tem consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com consciência.

A lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir cotidianamente como agentes da injustiça.

Um resultado comum e natural de um respeito indevido pela lei é a visão de uma coluna de soldados – coronel, capitão, cabos, combatentes e outros – marchando para a guerra numa ordem impecável, cruzando morros e vales, contra a sua vontade, e como sempre contra seu senso comum e sua consciência; por isso essa marcha é muito pesada e faz o coração bater forte. Eles sabem perfeitamente que estão envolvidos numa iniciativa maldita; eles têm tendências pacíficas. O que são eles, então? Chegarão a ser homens? Ou pequenos fortes e paióis móveis, a serviço de algum inescrupuloso detentor do poder?”

Dizia Thoreau, “se um homem marcha com um passo diferente de seus companheiros é porque ele ouve outro tambor”. E ainda: “para cada mil homens dedicados a cortar as folhas do mal, há apenas um atacando as raízes”.

Hoje tropecei em Thoreau na estante. Ao lado de um Original Self  de Thomas Moore,  a me lembrar de um certo riso cínico e cruel, mas também um outro riso, de confiança ingênua na vida a seguir entre o paradoxo e a originalidade. Que me desculpe Thomas Moore, mas esse riso me ocorre desbotado. Thoreau me viu primeiro.  Parece que o li ontem. E o ontem é hoje e todo dia. Acabou-se a era das grandes revoluções, sei, cabelo ao vento, gente jovem reunida, coração e mente desejosos de liberdade e paz, para mais e além de manifestações exultantes. Um certo conforto material vai tingindo a conformidade dos horizontes das marchas, das massas e das manhãs. 

A revolução, se resta e se ainda possível, pede indignar-se em oposição à prepotência e à injustiça deliberadas e instituídas por decreto pela força da mediocridade para sustentar os privilégios de poucos contra o sacrifício de tantos (e valeria o sacrifício se nobres ou sagrados fossem os fins). A revolução, se tanto, cobra mais que inteligência, vontade redobrada no esforço de dizer não a indagar-se um prumo ético, a indagar velhas e novas gerações, estruturas e poderes. Não se vá gritar às ruas nem pintar deus ou o diabo nos muros que isso degrada a paisagem. Quem derrubou muros agora contrata pedreiros. O resto, se quiser e puder, que acorde a vizinhança, porque os ouvidos têm paredes. Caminhar e cantar deixaram de ser opção sob as artes da rebeldia que abonou outrora brados de justiça, liberdade e esperança.

Caminhar sem rumo e ao desnorte jungir rebanhos tornou-se a arte da empulhação dos piores líderes, dos piores governos, por nossa culpa, nossa tão grande culpa. A república foi sindicalizada e as aparências não enganam mais. A empulhação é agora o grande trunfo, o grande negócio, a arma e a armadilha que sabota o rebanho e o degrada ao pior de sua espécie, no aprisco das pirotecnias dos maus governos ora a fabricarem consensos de ocasião para que à tripa-forra dos oportunismos colham os aproveitadores seus dividendos e não se lhes perturbem o sono. Nem se estorve a marcha admirável dos obedientes.

As ideologias peregrinas se juntaram à onda e à sina dos mariscos e o Universo continua com suas leis imutáveis. Ainda que um Egito ou uma Líbia se sublevem, uma Cuba subsista, um Brasil sufrague.

A revolução é soft.

Outro tambor.   

sexta-feira, 25 de março de 2011

A nuvem do não saber


Na era da imbecilidade exaltada pela carismática ignorância do nada saber, inteligência e liberdade se locupletam numa inversão perniciosa: pode-se dizer o que quiser, desde que não se diga coisa nenhuma. O besteirol ululante é antídoto para a inteligência. A inteligência, mais que a morte, é a indesejada das gentes.

Assim chegamos à logocastração.

Com a mente mutilada, qualquer opinião ou falta de, qualquer prosopopeia, chorumela muxoxo ou gargarejo de que resulte o riso e a ninguém e nada comprometam servem de catarse ao esfregão mental, ao confete e à perfumaria coletiva.

Na era da imbecilidade, pensar é crime e castigo.

Na ausência de senso crítico a fanfarronice ganha peso, tamanho e expressão remunerada.

A ignorância, quem diria, virou artigo de luxo com cada idiota sentado cada qual em seu barril. Idiotas inclusive há os que acham ser a vida uma universidade. Ou a universidade o universo.

Deve ser a isso que se chama a nova classe média.

O novo homo medius emerge de risonha democracia, mais ludens e abestável do que nunca. Mais eloquente que estátuas sem cabeça.

A boçalidade é motivo de orgulho, dá comenda e abre franquias à gratuidade das simpatias.  

Na escassez de modéstia, nos desvios de conduta e nas inversões de valores sobeja a egolatria. Tudo se permite, tudo se releva e esquece, embora nem tudo se compreenda. Qualquer pilhéria ou lisonja em boca própria mais e principalmente desdiz e desfaz o vitupério da imbecilização do espetáculo na sociedade do espetáculo de mau gosto burlesco.

A parlapatice é o fenômeno do século e a idiotia ganha contornos de perfeccionismo, virou técnica, pretexto, religião e culto. O pensamento liberal vai desaparecendo, minado por um autoritarismo sorrateiro de ramificações tiriricas e implicações nevrálgicas. Tudo tão livre que todos têm o direito de concordar com tudo. Também, que saco, essa gente que só sabe criticar. Mirem as rumas dos “donos” do poder, na retórica dos pais-da-pátria. A idiotia, porque é imortal, não morre no final. Segue fazendo iscola. Com tanta lulice por aí, onde é que não está sua contrafação?

A idiotia, nas palavras do escritor Mario Vargas Llosa, é “adotada conscientemente por preguiça intelectual, apatia ética e oportunismo civil. É ideológica e política, mas acima de tudo frívola, pois revela uma abdicação da faculdade de pensar por conta própria, de cotejar as palavras com os fatos que pretendem descrever, de questionar a retórica que faz as vezes de pensamento.”

A idiotia tornou-se lema, partido, bandeira, instituição, negócio, lei. Profissão de fé. É o epifenômeno da indigência intelectual arrestado na moral dominante da emergente civilizacinha, a impingir catástrofes mais deletérias e devastadoras que o aquecimento global, os tsunamis e o pum das vacas.

O fenômeno é ubíquo e o salve geral é quem puder.

segunda-feira, 21 de março de 2011

A verdade

                                                                    
O que é a verdade?
A morte da criança?
A vida do abutre?
A verdade é a fome.

Você tem fome de quê?

sexta-feira, 18 de março de 2011

De quarqué jeito...

Zé Miguilim comenta com a esposa Bastiana:
– Muié, ricibi uma intimação da Receita Federar. Caí na máia fina! Ocê acha que devo comparicê na odiênça do fiscar de botas e carça de sirviço mode parecê mais simpre ou de rôpa de saí, pra passá uma imagi de seriedade?
A esposa Bastiana responde:
– Home, vou dizê a mema coisa que mãe me falô quando preguntei pra ela si divia di usá carcinha di renda ô di citim na noite de núrpcia.
– E qué que foi qu'ela falô?
– Tanto faiz! Ele vai ti fudê de quarqué jeito...

sexta-feira, 11 de março de 2011

Tsunami no Japão, bendengó no Brasil

Terremoto de magnitude 8.9 atingiu a costa do Japão nesta sexta-feira, seguido de um tsunami com ondas de até dez metros de altura, e causou danos a diversas cidades da região (veja o vídeo).


É o pior tremor a atingir o país desde que começaram a ser feitos registros, no final do século 19, segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS, na sigla em inglês).

O tremor foi seguido por ao menos 19 réplicas, muitas delas de magnitude 6.0. Cidades e vilarejos ao longo dos 2.100 quilômetros da costa leste do país foram afetadas por violentos tremores que atingiram até a capital, Tóquio, localizada a 373 quilômetros de distância do epicentro.

A agência de desastres informou que mais de 200 pessoas morreram no tremor seguido por tsunami.

Dadas as proporções do desastre, os números chamam atenção, considerando os 903 mortos e os 370 desaparecidos na região serrana do Rio de Janeiro (veja aqui).

Não dá nem se pode comparar porque nenhuma tragédia humana cabe em estatísticas. Mas lá funciona uma Agência Meteorológica, com tecnologia preventiva, autoridades agem a tempo e responsavelmente diante da ameaça. Por aqui, conta-se com a ajuda divina, as ditas autoridades aparecem é depois, pairando de helicóptero sobre a eleitoreira desgraça alheia.  

(Foto: Editora Abril)

Depois, nem se toca no assunto. Vai um carnaval “made in China” ali, uma copa de mundo e uma olimpíada superfaturadas acolá para PACóvio pagar a conta e, depois, bebemorar e esquecer.  

Até que sobrevenha a próxima calamidade.

E gente aí estufa orgulhoso peito a dizer que odeia política.

A se gabar de que aqui não tem terremoto, tufão, tsunami.

Pois nem precisa. Com a avalanche de lama da corrupção e tanto desabamento moral, o flagelo da roubalheira e o cinismo tiririca fazem chuva de bendengó.

Ética? Só garoa.  

quinta-feira, 10 de março de 2011

A arca de Noé brasileira

Um dia, o Senhor chamou Noé que morava no Brasil e ordenou-lhe:
– ANTES DE 21.12. 2012, 6 meses antes farei chover ininterruptamente durante 40 dias e 40 noites, até que o Brasil seja coberto pelas águas.
Os maus serão destruídos, mas quero salvar os justos e um casal de cada espécie animal. Vai e constrói uma arca de madeira.
No tempo certo, os trovões deram o aviso e os relâmpagos cruzaram o céu.
Noé chorava, ajoelhado no quintal de sua casa, quando ouviu a voz do Senhor soar furiosa, entre as nuvens:
– Onde está a arca, Noé?
– Perdoe-me, Senhor, suplicou o homem. Fiz o que pude, mas encontrei dificuldades imensas:
Primeiro tentei obter uma licença da Prefeitura, mas para isso, além das altas taxas para obter o alvará, me pediram ainda uma contribuição para a campanha de eleição do prefeito.
Precisando de dinheiro, fui aos bancos e não consegui empréstimo, mesmo aceitando aquelas taxas de juros...
O Corpo de Bombeiros exigiu um sistema de prevenção de incêndio, mas consegui contornar, subornando um funcionário.
Começaram então os problemas com o IBAMA e a FEPAM para a extração da madeira. Eu disse que eram ordens SUAS, mas eles só queriam saber se eu tinha um “Projeto de Reflorestamento” e um tal de “Plano de Manejo”.
Neste meio tempo ELES descobriram também uns casais de animais guardados em meu quintal.
Além da pesada multa, o fiscal falou em “Prisão Inafiançável” e eu acabei tendo que matar o fiscal, porque, para este crime, a lei é mais branda.
Quando resolvi começar a obra, na raça, apareceu o CREA e me multou porque eu não tinha um Engenheiro Naval responsável pela construção.
Depois apareceu o Sindicato exigindo que eu contratasse seus marceneiros com garantia de emprego por um ano.
Veio em seguida a Receita Federal, falando em “sinais exteriores de riqueza” e também me multou.
Finalmente, quando a Secretaria Municipal do Meio Ambiente pediu o “Relatório de Impacto Ambiental” sobre a zona a ser inundada, mostrei o mapa do Brasil.
Aí, quiseram me internar num Hospital Psiquiátrico!
Sorte que o INSS estava de greve...
Noé terminou o relato chorando, mas notando que o céu clareava perguntou:
– Senhor, então não irás mais destruir o Brasil?
– Não! – respondeu a Voz entre as nuvens. 
– Pelo que ouço de ti, Noé, cheguei tarde! O governo já se encarregou de fazer isso!

segunda-feira, 7 de março de 2011

Flor de retama


A flor de retama é variedade nativa no Peru.

É um arbusto alto, de flores grandes e amarelo vivo.

Planta teimosa, de raiz tenaz; quando a cortam, logo brota mais adiante.

A flor dá nome a uma canção – um huayno.

Em 1969, em Ayacucho, na província de Huanta, estudantes e camponeses enfrentaram violenta repressão do Estado Militar. Na rebelião, foram massacrados pelos Sinchis, a força do governo na contra-revolução.

Desde o terror em Ayacucho, a flor de retama virou símbolo de resistência e solidariedade.

Para além de seu sentido original, a canção foi entoada na marcha dos soldados do exército, apropriada pelo Sendero Luminoso, organização terrorista peruana, serviu como hino de guerrilheiros das forças armadas revolucionárias. Flor de Retama ficou como a alma da canção dos momentos de dor, alegria e luta.

Quando viajei ao Peru, uma amiga, a escritora Leila Jalul, pediu-me que lhe trouxesse uma muda de flor de retama, por um desses caprichos insondáveis da natureza humana.

Eu estava em Lima e procurei nos mercados. Sob olhares de desconfiança, respostas sonegadas e evasivas, alguém me informou “sólo encontrarás la flor en el interior”.

Depois de tanto procurar, consegui um CD com a música, gravada por Martina Portocarrero. Sem a flor, pensei, a canção bastaria ao desejo de minha amiga. Na loja, ao embalar o CD, o vendedor me lembrou que “todo aquel que canta Flor de Retama tiene fama de senderista”.

No dia seguinte peguei o avião para Puerto Maldonado, uma cidade pequena da Amazônia peruana, na Reserva Nacional de Tambopata.

Em Puerto Maldonato contratei o senhor Ortiz. Guia muito bem recomendado, experiente, cheio de histórias, ele me contou que acompanhou o oceanógrafo Jacques Costeau em sua expedição pelo rio Madre de Díos.

Combinado, saímos de madrugada, navegando pelo rio, até uma região chamada Infierno, na selva.

O sol mal havia despontado e o senhor Ortiz parou o barco à margem do rio. Queria mostrar um observatório de Jacques Costeau, um santuário de papagaios azuis agora transformado em ponto turístico local.

Ali, sem que eu nada dissesse, o senhor Ortiz de repente apontou para um barranco e me disse “La flor de retama”.

Olhei e lá estava, um arbusto alto, carregado de flores douradas na luz da manhã.

O senhor Ortiz não conteve o espanto quando me viu gritar “Gracias, señor Ortiz, gracias, gracias!”, subindo em disparada o barranco e de lá descer abraçado a um buquê de retama como se carregasse um troféu. Depois de explicar-lhe a razão de minha euforia, o senhor Ortiz balançou a cabeça. “La flor de la historia”, disse e voltamos a navegar, tarde e noite adentro, rumo a Infierno.

Dois dias depois, deixei Puerto Maldonado. Aluguei um carro, atravessei de balsa o rio e segui pela estrada de terra esburacada, cheia de desvios, por causa das obras da Carretera Transoceânica, que liga o Peru ao Brasil. À tarde cheguei a Iñapari, na tríplice divisa com o Brasil e a Bolívia. Era feriado, na cidade acontecia um festival. Uma dificuldade tremenda encontrar o agente da imigração para carimbar meu passaporte e poder atravessar a fronteira.

Mais difícil ainda achar um táxi que me levasse a Rio Branco, no Acre. A fome e o cansaço faziam sobrepeso na bagagem, o calor torrava qualquer sombra de otimismo na cidade deserta. Só no final da tarde apareceu um motorista, cobrando a peso de ouro a travessia para alívio do meu cansaço. Ainda tive que disputar o carro com três peruanos que chegaram depois de mim e diziam que o táxi era para eles. Na confusão, joguei as malas dentro do carro, me aboletei lá dentro e o motorista arrancou. O buquê de retama ficou para trás.

À noite cheguei a Brasileia, no Acre. Fui dormir num hotel, de onde telefonei para Leila e disse-lhe que havia perdido a flor encomendada.

Brasileia fica na divisa com a Bolívia. Basta atravessar uma ponte para chegar à Cobija, do lado boliviano. Foi o que fiz, logo pela manhã. Mal atravessei a ponte vi, à esquerda, atrás de um posto da polícia da fronteira conjugado ao quintal das casas de madeira, um arbusto carregado de retama. Tive de conter o impulso que tomou conta de mim nas barrancas de Madre de Díos.

Tentei chegar até a planta, tentei explicar a história ao soldado de plantão – irrredutível às minhas explicações convertidas em rogos. O guarda boliviano me olhava enviesado, o forasteiro pedindo para colher retama, a flor dos terroristas, dentro de uma área militar. Estava a perder a paciência quando, lá do quintal, veio uma mulher que a tudo ouvia. Trouxe um maço de flores, me entregou e afastou-se, sem dizer uma palavra, sem me olhar nos olhos, sem me dar tempo de agradecer.

Com as flores nas mãos, andei pelas ruas de Cobija, voltei a Brasileia, dali segui para Rio Branco, onde entreguei-as num demorado abraço a Leila. Missão cumprida, eu disse.

Mais tarde, quando revelei as fotos da viagem, foi que o sentido da flor de retama brotou no fundo dessa história.

No Peru, li um livro, “Adiós, Ayacucho”.  É a história de um homem morto que viaja desde Ayacucho até Lima, à procura de seus ossos que foram dispersos pelo país para ocultar seu assassinato no tempo da ditadura. A história começa exatamente em Ayacucho e li-a antes mesmo da incumbência da flor de retama. A morte deste homem de Ayacucho é a razão de sua vida, de sua busca.

Nesta viagem, também lidei com a morte.

Vi-a iminente na estrada que vai de Arequipa a Puno, ao viajar em um ônibus do povo sob uma nevasca que fez o veículo resvalar à beira de um abismo na cordilheira e nos isolou por mais de sete horas na neve.

Reencontrei-a na menina mordida por um cão doente de raiva, vendo-a morrer por falta de socorro, sem nada poder fazer, em meio à estrada de Juliaca bloqueada pela multidão no “paro”, uma greve nacional dos trabalhadores peruanos.

Reconheci-a dentro de mim e soube que desde sempre ali esteve, morte irmã, ao atravessar sozinho um antigo cemitério inca no deserto de Nazca, a caminho de Cahuachi, onde chorei sem saber porque, junto às caveiras e ossos espalhados na areia, às tumbas reviradas pelos huaqueros, ladrões de relíquias.

Mirei-a, face a face, conduzido por um velho índio aimará em Puno, perto do lago Titicaca, ouvindo o sopro dos espíritos na noite que me pareceu eterna, por isso, a mais breve noite de todas as noites de minha vida.

“Sólo encontrarás la flor en el interior”. Ou seria "Encontrarás la flor en el sólo interior", talvez isso me houvessem dito e só agora eu percebia. Diante da foto, abriu-se para mim o enigma de retama.

Dor, alegria e luta persistem ainda que por temor ou por não saber nada se diga de vida e morte.

A flor está lá, no interior.

Desponta viva na paisagem, de mesma profunda e resistente raiz, inescapável raiz da vida e da morte.

De repente desponta, das águas de Madre de Díos, do quintal das velhas casas, das mãos da mulher desconhecida, do solo ou da solidão, do verso da canção:

“Los ojos (...) tienen
hermosos sueños,
sueñan el trigo en las eras,
el viento por las laderas,
y en cada niño una estrella”.

Desponta e resiste em memória, en las palabras que já não sei se ouvi, se li, mas sei, estão lá, enraizadas no sentimento, solo interior: na vida e na morte nada é fracasso nem vitória de uma sobre outra, mas se alguém pensa mais além e tem fé ou esperança, sonha amanhã. ¿E mañana, quién será?

quinta-feira, 3 de março de 2011

Seu nome é ninguém


Ele comparece na marcha da história quando e se a história não dá folga para o bailado.

Ele é o braço de uma balança vesga sempre a pender para a cegueira ou a miopia.

Senão para ver a banda passar, ele só se coça no pulguedo.  

Unido jamais será vencido? Só no reinado de momo da preguiça e na charanga da geral.

No resto da história, vai de canga e cambão, puxando o recavém sob ferrão e peso na cantadeira.

Sombra a seguir rastros, sem nem de longe suspeitar o que é, o que quer, o que pode, errante, ele não tem rosto.

Seu nome não é povo.

É multidão, é ninguém.