segunda-feira, 7 de março de 2011

Flor de retama


A flor de retama é variedade nativa no Peru.

É um arbusto alto, de flores grandes e amarelo vivo.

Planta teimosa, de raiz tenaz; quando a cortam, logo brota mais adiante.

A flor dá nome a uma canção – um huayno.

Em 1969, em Ayacucho, na província de Huanta, estudantes e camponeses enfrentaram violenta repressão do Estado Militar. Na rebelião, foram massacrados pelos Sinchis, a força do governo na contra-revolução.

Desde o terror em Ayacucho, a flor de retama virou símbolo de resistência e solidariedade.

Para além de seu sentido original, a canção foi entoada na marcha dos soldados do exército, apropriada pelo Sendero Luminoso, organização terrorista peruana, serviu como hino de guerrilheiros das forças armadas revolucionárias. Flor de Retama ficou como a alma da canção dos momentos de dor, alegria e luta.

Quando viajei ao Peru, uma amiga, a escritora Leila Jalul, pediu-me que lhe trouxesse uma muda de flor de retama, por um desses caprichos insondáveis da natureza humana.

Eu estava em Lima e procurei nos mercados. Sob olhares de desconfiança, respostas sonegadas e evasivas, alguém me informou “sólo encontrarás la flor en el interior”.

Depois de tanto procurar, consegui um CD com a música, gravada por Martina Portocarrero. Sem a flor, pensei, a canção bastaria ao desejo de minha amiga. Na loja, ao embalar o CD, o vendedor me lembrou que “todo aquel que canta Flor de Retama tiene fama de senderista”.

No dia seguinte peguei o avião para Puerto Maldonado, uma cidade pequena da Amazônia peruana, na Reserva Nacional de Tambopata.

Em Puerto Maldonato contratei o senhor Ortiz. Guia muito bem recomendado, experiente, cheio de histórias, ele me contou que acompanhou o oceanógrafo Jacques Costeau em sua expedição pelo rio Madre de Díos.

Combinado, saímos de madrugada, navegando pelo rio, até uma região chamada Infierno, na selva.

O sol mal havia despontado e o senhor Ortiz parou o barco à margem do rio. Queria mostrar um observatório de Jacques Costeau, um santuário de papagaios azuis agora transformado em ponto turístico local.

Ali, sem que eu nada dissesse, o senhor Ortiz de repente apontou para um barranco e me disse “La flor de retama”.

Olhei e lá estava, um arbusto alto, carregado de flores douradas na luz da manhã.

O senhor Ortiz não conteve o espanto quando me viu gritar “Gracias, señor Ortiz, gracias, gracias!”, subindo em disparada o barranco e de lá descer abraçado a um buquê de retama como se carregasse um troféu. Depois de explicar-lhe a razão de minha euforia, o senhor Ortiz balançou a cabeça. “La flor de la historia”, disse e voltamos a navegar, tarde e noite adentro, rumo a Infierno.

Dois dias depois, deixei Puerto Maldonado. Aluguei um carro, atravessei de balsa o rio e segui pela estrada de terra esburacada, cheia de desvios, por causa das obras da Carretera Transoceânica, que liga o Peru ao Brasil. À tarde cheguei a Iñapari, na tríplice divisa com o Brasil e a Bolívia. Era feriado, na cidade acontecia um festival. Uma dificuldade tremenda encontrar o agente da imigração para carimbar meu passaporte e poder atravessar a fronteira.

Mais difícil ainda achar um táxi que me levasse a Rio Branco, no Acre. A fome e o cansaço faziam sobrepeso na bagagem, o calor torrava qualquer sombra de otimismo na cidade deserta. Só no final da tarde apareceu um motorista, cobrando a peso de ouro a travessia para alívio do meu cansaço. Ainda tive que disputar o carro com três peruanos que chegaram depois de mim e diziam que o táxi era para eles. Na confusão, joguei as malas dentro do carro, me aboletei lá dentro e o motorista arrancou. O buquê de retama ficou para trás.

À noite cheguei a Brasileia, no Acre. Fui dormir num hotel, de onde telefonei para Leila e disse-lhe que havia perdido a flor encomendada.

Brasileia fica na divisa com a Bolívia. Basta atravessar uma ponte para chegar à Cobija, do lado boliviano. Foi o que fiz, logo pela manhã. Mal atravessei a ponte vi, à esquerda, atrás de um posto da polícia da fronteira conjugado ao quintal das casas de madeira, um arbusto carregado de retama. Tive de conter o impulso que tomou conta de mim nas barrancas de Madre de Díos.

Tentei chegar até a planta, tentei explicar a história ao soldado de plantão – irrredutível às minhas explicações convertidas em rogos. O guarda boliviano me olhava enviesado, o forasteiro pedindo para colher retama, a flor dos terroristas, dentro de uma área militar. Estava a perder a paciência quando, lá do quintal, veio uma mulher que a tudo ouvia. Trouxe um maço de flores, me entregou e afastou-se, sem dizer uma palavra, sem me olhar nos olhos, sem me dar tempo de agradecer.

Com as flores nas mãos, andei pelas ruas de Cobija, voltei a Brasileia, dali segui para Rio Branco, onde entreguei-as num demorado abraço a Leila. Missão cumprida, eu disse.

Mais tarde, quando revelei as fotos da viagem, foi que o sentido da flor de retama brotou no fundo dessa história.

No Peru, li um livro, “Adiós, Ayacucho”.  É a história de um homem morto que viaja desde Ayacucho até Lima, à procura de seus ossos que foram dispersos pelo país para ocultar seu assassinato no tempo da ditadura. A história começa exatamente em Ayacucho e li-a antes mesmo da incumbência da flor de retama. A morte deste homem de Ayacucho é a razão de sua vida, de sua busca.

Nesta viagem, também lidei com a morte.

Vi-a iminente na estrada que vai de Arequipa a Puno, ao viajar em um ônibus do povo sob uma nevasca que fez o veículo resvalar à beira de um abismo na cordilheira e nos isolou por mais de sete horas na neve.

Reencontrei-a na menina mordida por um cão doente de raiva, vendo-a morrer por falta de socorro, sem nada poder fazer, em meio à estrada de Juliaca bloqueada pela multidão no “paro”, uma greve nacional dos trabalhadores peruanos.

Reconheci-a dentro de mim e soube que desde sempre ali esteve, morte irmã, ao atravessar sozinho um antigo cemitério inca no deserto de Nazca, a caminho de Cahuachi, onde chorei sem saber porque, junto às caveiras e ossos espalhados na areia, às tumbas reviradas pelos huaqueros, ladrões de relíquias.

Mirei-a, face a face, conduzido por um velho índio aimará em Puno, perto do lago Titicaca, ouvindo o sopro dos espíritos na noite que me pareceu eterna, por isso, a mais breve noite de todas as noites de minha vida.

“Sólo encontrarás la flor en el interior”. Ou seria "Encontrarás la flor en el sólo interior", talvez isso me houvessem dito e só agora eu percebia. Diante da foto, abriu-se para mim o enigma de retama.

Dor, alegria e luta persistem ainda que por temor ou por não saber nada se diga de vida e morte.

A flor está lá, no interior.

Desponta viva na paisagem, de mesma profunda e resistente raiz, inescapável raiz da vida e da morte.

De repente desponta, das águas de Madre de Díos, do quintal das velhas casas, das mãos da mulher desconhecida, do solo ou da solidão, do verso da canção:

“Los ojos (...) tienen
hermosos sueños,
sueñan el trigo en las eras,
el viento por las laderas,
y en cada niño una estrella”.

Desponta e resiste em memória, en las palabras que já não sei se ouvi, se li, mas sei, estão lá, enraizadas no sentimento, solo interior: na vida e na morte nada é fracasso nem vitória de uma sobre outra, mas se alguém pensa mais além e tem fé ou esperança, sonha amanhã. ¿E mañana, quién será?

8 comentários:

  1. Flor de retama
    Ricardo Dolorier



    Vengan todos a ver hay vamos a ver,
    vengan hermanos a ver hay vamos a ver
    en la plazuela de huanta,amrillito flor de retama
    amarillito amarillando flor de retama
    por cinco esquinas estan ,
    los sinchis entrando estan,
    en la plazuela de huanta los sinchis rodeando estan
    van a matar estudiantes huantinos de corazon
    amarillito,amarillando flor de retama (bis)
    donde la sangre del pueblo ahi se derrama,(bis).
    alli mismito florece amarillito flor de retama ,
    amarillto amarillando flor de retama

    la sangre del pueblo tiene rico perfume (bis).
    huele a jazmine violetas geranios y margaritas
    a polvora y dinamita (bis)
    !!carajo!! a polvora y dinamita (bis)

    Pois é, companheiro, plantei a plantinha danada e a danada da plantinha vingou. Acho que tentei ser uma orquídea dos pântanos, mas...
    Não passo de uma flor de retama. Resisto!
    Bela lembrança!!!!

    Agora espero você aqui com um pé de pequi, tá legal?

    ResponderExcluir
  2. (Fora as lembranças inconfessáveis...)
    Te amo, Leila.
    Saudade!

    ResponderExcluir
  3. “... primeiro me cortaram a falange do
    dedo pequeno, e eu nem conta me dei.
    Só vi o sangue, quando me cortaram
    a falange do outro dedo. Gritei muito.
    ... outra granada de fósforo explodiu
    as minhas costas esvaziando minha
    cabeça e abrindo-me o estômago
    como se fosse um trapo.
    ... alguém me levantou pelo pé, e descobri
    então que me faltava a perna esquerda...
    ... antes de chegar ao buraco que seria
    meu túmulo, me rechearam a barriga com
    palha seca, rindo-se de mim, como se eu
    fosse um(a) boneco(a) feito(a) para ser
    desfeito(a).”

    ResponderExcluir
  4. Um trecho do Adios Ayacucho que selecionei para o meu COISAS DE MULHER. Se desejares depois mando o poema completo.
    Beijos de quarta de cinzas.

    ResponderExcluir
  5. Manda vir. Sei que você tem o livro, reli-o em sua casa em Rio Branco. No original espanhol, a língua torna a história mais contudente, cortante, uma terrível beleza.
    Beijo também.

    ResponderExcluir
  6. È vero! Muito vero!
    Adoro a língua espanhola. Tem mais musicalidade que a francesa.
    Pena que sou o que sou: uma brasileira. Uma mulher comum, porém cortante!!!! rs

    ResponderExcluir
  7. Esta história você havia me contado amigo, mas não com este mesmo sentimento.

    Saludos desde Buenos Aires

    Joubert

    ResponderExcluir
  8. É que as histórias adormecem, Joubert. Depois brotam.
    Meu abraço!

    ResponderExcluir