Os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem
querem destruir
O ponto de partida é uma frase de Lula: “Não deixarei que um tucano assuma de novo a
Presidência“.
Lembro, no entanto, que não sou de pegar no pé de Lula por suas frases. Cheguei
a propor um “habeas língua” para o então presidente na sua fase mais punk,
quando disse que a mãe nasceu analfabeta e que se a Terra fosse quadrada a
poluição não circularia pelo mundo. Lembro também que hoje concordo com o
filósofo americano Richard Rorty: não há nada de particular que os intelectuais
saibam e todo mundo não saiba. Refiro-me à ilusão de conhecer as leis da
História, deter segredos profundos sobre o que dinamiza seu curso e dominar em
detalhes os cenários futuros da humanidade.
Nesse sentido, a eleição de Lula, um homem do
povo, sem educação formal superior, não correspondeu a essa constatação moderna
de Rorty. Isso porque, apesar de sua simplicidade, Lula encarnava a classe
salvadora no sonho dos intelectuais, via luta de classes como dínamo da
História humana, e traçava o mesmo futuro paradisíaco para o socialismo. Na
verdade, Lula falava a linguagem dos intelectuais. Seus comentários que
despertaram risos e ironias no passado eram defendidos pelos intelectuais com o
argumento de que, apesar de pequenos enganos, Lula era rigorosamente fundamentado
na questão essencial: o rumo da História humana.
A verdade é que a chegada do PT ao poder o
consagrou como um partido social-democrata e, ironicamente, a social-democracia
foi o mais poderoso instrumento do capitalismo para neutralizar os comunistas
no movimento operário. São mudanças de rumo que não incomodam muito quando se
chega ao poder. O capitalismo é substituído pelas elites e o proletariado
salvador, pelos consumidores das classes C e D. Os sindicalistas vão ao paraíso
de acordo com os critérios da cultura nacional, consagrados pela canção: É necessário uma viração pro Nestor,/ que está
vivendo em grande dificuldade.
Se usarmos a fórmula tradicional para atenuar
o discurso de Lula, diremos que o ex-presidente queria expressar, com sua frase
sobre um tucano na Presidência, que faria todo o esforço para a vitória do seu
partido e para esclarecer os eleitores sobre a inconveniência de eleger o
adversário. Lula sabe que ninguém manda no processo eleitoral. São os eleitores
que decidem se alguém ocupará a Presidência. Foi só um rápido surto
autoritário, talvez estimulado pelo tom de programa de TV, luzes e uma plateia
receptiva.
Se o candidato tucano for, como tudo indica,
o senador Aécio Neves, também eu, em trincheira diferente da de Lula, farei
todo o esforço para que o tucano não chegue à Presidência. Aécio foi um dos
artífices na batalha para poupar Sérgio Cabral da CPI e confirmou, com essa
manobra, a suspeita de que não é muito diferente do PT no que diz respeito aos
critérios de alianças e ao uso da corrupção dos aliados para fortalecer seu
projeto de poder. Tudo o que se pode fazer, porém, é tornar clara a situação
para o eleitor, pois só ele, em sua soberania, vai decidir quem será o eleito.
Na verdade, essa batalha será travada também
na esfera da economia. Vivemos um momento singular na História do mundo. A
crise mundial opõe defensores da austeridade, como Angela Merkel, e os que
defendem mais gastos e investimentos, dentro da visão keynesiana de que a
austeridade deve ser implantada no auge do crescimento, e não durante o período
depressivo. O PT dirigiu o País num período de crescimento e muitos gastos, não
tanto no investimento, mas no consumo. É possível que esse modelo de estímulo à
economia tenha alcançado seus limites.
Muito possivelmente, ainda, o curso dos
acontecimentos não dependerá tanto da vontade de Lula nem dos nossos esforços
individuais. A democracia prevê alternância no poder. E a análise de como essa
alternância se dá na prática revela, em muitos casos, uma gangorra entre austeridade
e gastança. De modo geral, a crise derrota um governo austero e coloca seu
oposto no poder, como na França. Mas às vezes derrota um governo
social-democrata e elege seu adversário direto, como na Espanha.
Pode ser que o esgotamento do modelo de estímulo
ao consumo abra espaço para discurso de reformas fiscal e trabalhista, de foco
em educação e infraestrutura, enfim, de uma fase de austeridade. E não é
totalmente impossível que um partido de oposição chegue ao governo. Restaria ao
PT, nesse caso, um grande consolo: ao cabo de um período de austeridade, o
partido teria grandes chances de voltar ao poder com seu discurso do “conosco
ninguém pode”, do “vamos que vamos”, “nunca antes neste país”… Não estou
afirmando que esse mecanismo vai prevalecer, é uma das possibilidades no
horizonte. A outra é o próprio PT assumir algumas das diretivas de austeridade
e conduzir o processo sem necessariamente deixar o poder.
Por mais que a crise seja aguda, o apelo ao
consumo e à manutenção de intensas políticas sociais é muito forte na
imaginação popular. O discurso de austeridade só tem espaço eleitoral quando as
coisas parecem ter degringolado.
O futuro está aberto e não será definido pela
exclusiva vontade de Lula. Com todo o respeito ao Ratinho e sua plateia, o povo
brasileiro é mais diverso e complexo. Se é verdade que a História não se define
nas academias intelectuais, isso não significa que ela tenha passado a ser
resolvida nos programas de auditório.
No script do socialismo real o proletariado
foi substituído pelo partido, o partido pelo comitê central e o comitê central
por um só homem. No script da social-democracia tropical Lula substituiu o
proletariado, o partido, o comitê central e o próprio povo brasileiro ao dizer
que não deixará um tucano voltar à Presidência. Se avaliar com tranquilidade o
que disse, Lula vai perceber que sua frase não passa de uma bravata.
O que faz um homem tão popular e bem-sucedido
bravatear no Programa do Ratinho é um mistério da mente humana que não tenho
condições de decifrar. A única pista que me vem à cabeça está na sabedoria
grega: os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir.
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