Antonio
Prata (Folha de S.Paulo, 20/06/2012)
Faz mais ou menos um mês,
ouvi uma mulher dizer que nunca iria a uma nutricionista gorda. Semanas depois,
um amigo demonstrou preocupação ao descobrir que seu psicanalista fumava.
Segundo eles, ao que parece, não pode cuidar da dieta ou da ansiedade alheia
quem não controla os próprios impulsos.
Ah, que época bunda-mole a
nossa! Elegemos como principal virtude justo a mais medíocre: o autocontrole.
Foi-se o tempo em que o herói era aquele capaz de romper as amarras sociais,
morais, históricas. De enfrentar o mundo em nome de um ideal ou de dar um
piparote nas sentinelas do superego em busca de seu eu profundo.
O Super-Homem atual é o
que, avaro com os prazeres, melhor consegue inserir-se nos escaninhos
disponíveis do mundo. É um profissional bem-sucedido e com barriga de
tanquinho. Seus feitos não serão medidos pelas marcas deixadas na história, mas
pelo extrato da conta bancária e pela taxa de colesterol.
Não falo de fora. Sou filho
da época, também tento enquadrar-me neste anódino “zeitgeist”, de sonhos tão
mirrados como as cinturas de nossas divas: sou funcionário esforçado, corro na
esteira, acredito nos poderes milagrosos da quinua. Quando ponho a cabeça no
travesseiro, contudo, envergonho-me e lamento a grandeza perdida.
Outrora buscávamos a
nascente do Nilo, a verdade última das coisas, nos metíamos no mato sem
cachorro, em mares nunca dantes navegados, nos entregávamos a amores e
substâncias proibidas atrás de paraísos naturais ou artificiais. Agora, aqui
estamos nós, usando 30 séculos de conhecimento acumulado para vender mais pasta
de dentes, mais jornais, empenhados em descobrir como fazer dez arruelas ao
custo de nove e receber uma promoção; aqui estamos nós, reinando sobre a
natureza, mas comendo barrinhas de cereais.
Onde foi que nós erramos?
Em que beco escuro do século 20 um Mefisto chinfrim sussurrou em nossos ouvidos
que alcançaríamos a vida eterna caso abríssemos mão de nossos corações em nome
do “sistema cardiovascular”? Que bizarra inversão foi essa que nos fez
acreditar que a função das comidas é facilitar o trabalho do sistema digestivo,
e não que a função do sistema digestivo é lidar com nossas comidas? Desculpem
por ser chulo, caro leitor, mas eis a ambição de nossa triste humanidade: fazer
um cocô durinho.
Veja, acho bom que haja
campanhas contra o cigarro. Que o exercício físico venha se tornando um hábito
mais e mais comum. A vida é curta e preciosa demais para que a atravessemos com
pigarro e sem fôlego. Mas é curta e preciosa demais também para ser gasta nesta
liberdade (auto) vigiada, em que o prazer e a poesia são drenados a cada dia
pelos ralos da eficiência.
Não creio em nada para além
do último suspiro, mas ficção por ficção, sou mais Dionísio, São Francisco e
Ogum do que esse culto desvairado pela bicicleta ergométrica, o Excel e a
fenilalanina.
Bichos burros! Indo do
berço ao túmulo agarrados às certezas mais tacanhas e permitindo-nos o mínimo
de prazer, o grande legado de nossa época será belíssimos, saudabilíssimos
cadáveres-injustiça, aliás, com as minhocas, que não estão preocupadas com o
colesterol nem com suas anelídeas silhuetas.
Caramba, eu vinha pensando muito nisso.
ResponderExcluirE a essa alienação temperada com frases sobre autocontrole, poder da mente, que delega tudo à capacidade, ao esforço e ao trabalho humanos?
O autocontrole não é a chave que abre a porta do céu, como vem sido trabalhado em livros de auto-ajuda, em revistas de ampla circulação e em grupos pseudo-religiosos que surgem em cada esquina. O homem se pôs ao centro de tal forma, que o ideal só seria atingido por entrega alucinada à busca pelos bons níveis daquilo e disso outro.
Agora há pouco li um papel que estava nas mãos de um homem sentado ao meu lado no ônibus, papel esse que pertencia a um grupo dito pacífico e espiritualista: ''Aquele que controla sua mente controla seu ambiente.'' Acho que não preciso expôr com maior clareza a soberba humana expressa nessa (nada) ingênua frase.
Falta entrega ao bem, à paz, ao certo. Menos auto-, e mais alter-, por favor.