New York Times, Editorial em 26 de Junho de 1992
“EMBORA tenhamos visto a aparente morte do comunismo, modos de pensar que nasceram no comunismo ou foram fortalecidos pelo comunismo ainda governam nossas vidas. Mas nem todos eles são imediatamente perceptíveis como sendo um legado do comunismo. O exemplo mais evidente é o politicamente correto.
Primeira questão: a linguagem. Não é novidade a ideia de que o comunismo degradou a linguagem, e, com a linguagem, o pensamento. Há um jargão comunista reconhecível em cada frase. Pouca gente na Europa não fez piadas, em seu tempo, sobre “passos concretos”, “contradições”, “a interpenetração de opostos”, e o resto.
A primeira vez em que eu vi que slogans destruidores de mentes tinham a capacidade de criar asas e voarem para longe de suas origens foi nos anos 50, quando li um artigo no Times de Londres e constatei que estavam sendo utilizados. “A manifestação no Sábado passado foi prova irrefutável de que a situação concreta...” Palavras confinadas à esquerda como se fossem animais encurralados passaram para o uso geral. Junto com elas, vieram as ideias. Pode-se ler artigos inteiros na imprensa conservadora e liberal que foram marxistas sem que os escritores soubessem. Mas há um aspecto dessa herança que é muito mais difícil de perceber.
Até mesmo há cinco ou seis anos, o Izvestia, o Pravda e vários outros jornais comunistas eram escritos em uma linguagem que parecia planejada para ocupar o maior espaço possível sem, no entanto, dizer qualquer coisa. Porque, claro, era perigoso tomar posições que precisassem ser defendidas. Agora todos esses jornais redescobriram o uso da língua. Mas a herança de uma língua morta e vazia pode ser encontrada, atualmente, nos meios acadêmicos, particularmente em algumas áreas da sociologia e da psicologia.
Um jovem amigo meu, do Iêmen do Norte, economizou todo o dinheiro que tinha para viajar à Grã-Bretanha para estudar na área da sociologia que ensina a difundir os conhecimentos ocidentais a nativos sem conhecimento. Pedi para ver seu material de estudo e ele me mostrou uma verdadeira bíblia, tão mal escrita e com um jargão tão feio e vazio que era difícil de entender. Havia centenas de páginas, mas ideias expostas podiam ser facilmente resumidas a dez.
Sim, eu sei que o ofuscamento do meio acadêmico não começou com o comunismo – como Swift, por exemplo, nos informa – mas o pedantismo e o excesso de palavras do comunismo têm suas raízes no meio acadêmico alemão. E agora isso se tornou uma epidemia que contamina o mundo inteiro.
É um dos paradoxos de nosso tempo o fato de que ideias capazes de transformar nossas sociedades, cheias de visões sobre como o animal humano, de fato, se comporta e pensa, são frequentemente apresentadas num linguajar ilegível.
O segundo ponto é ligado ao primeiro. Ideias poderosas que afetam nosso comportamento podem ser visíveis até em poucas frases, ou até mesmo em uma frase ou um chavão. Todos os escritores ouvem essas perguntas de quem os entrevista: “Você acha que um escritor deveria...?” “Escritores deviam...?” A pergunta sempre tem a ver com uma posição política, e observe que a suposição por trás das palavras é de que todos os escritores devem fazer a mesma coisa, seja o que for. As frases “Um escritor deveria...?” “Escritores deviam...?” têm uma longa história que parece desconhecida para as pessoas que as utilizam tão arbitrariamente. Outra frase é “engajamento”, tão em voga em nossos dias. Fulano de tal é um escritor engajado?
Um sucessor de “engajamento” é “conscientizar.” Trata-se de uma faca de dois gumes. As pessoas a serem conscientizadas podem receber informações de que desesperadamente careçam e precisem, e podem receber o apoio moral que necessitem. Mas o processo quase sempre significa que o pupilo receberá somente a propaganda que o instrutor aprove. “Conscientizar”, como “comprometimento” e “politicamente correto”, é uma continuação da velha cantilena das diretrizes partidárias.
Um modo de pensar bastante comum na crítica literária não é visto como consequência do comunismo, embora o seja. Todos os escritores têm a experiência de ouvir que um conto ou história é “sobre” alguma coisa qualquer. Escrevi uma história, “O Quinto Filho,” que foi, ao mesmo tempo, definido como sendo sobre o problema palestino, pesquisas genéticas, feminismo, antissemitismo e por aí vai.
Uma jornalista da França entrou na minha sala e, antes mesmo de se sentar, disse: “Claro que "O Quinto Filho” é sobre a AIDS.”
É o tipo de coisa que interrompe qualquer conversa, eu lhe garanto. Mas o que é interessante é o hábito mental que leva a analisar um trabalho literário desse modo. Se você disser: “Se eu quisesse escrever sobre a AIDS ou o problema palestino, eu teria escrito um panfleto”, você normalmente recebe olhares embasbacados. A noção de que um trabalho imaginativo tenha de, “na verdade”, ser sobre algum problema é, novamente, herança do realismo socialista. Escrever uma história pela história é frívolo, sem falar em reacionário.
A exigência de que histórias devam ser “sobre” algo é típica do pensamento comunista e, mais longinquamente, do pensamento religioso, com sua vocação para livros de autoaprimoramento tão simplórios quanto suas mensagens.
A expressão “politicamente correto” nasceu quando o comunismo entrava em colapso. Não acho que foi por acaso. Eu não estou sugerindo que a tocha do comunismo tenha sido passada para os politicamente corretos. Estou sugerindo que os hábitos mentais foram absorvidos, frequentemente sem que fosse percebidos.
Obviamente há algo bastante atraente sobre dizer aos outros o que fazer: Estou colocando isso dessa forma infantil ao invés de numa linguagem mais intelectual porque vejo isso como um comportamento infantil. As artes em geral são sempre imprevisíveis, rebeldes e tendem a ser, em sua melhor forma, desconfortáveis. A literatura, em particular, sempre inspirou os comitês de Congressos, os Zhdanovs da vida, os arroubos moralizantes, e, na pior hipótese, a persecução. É perturbador que o politicamente correto não pareça saber quais são seus exemplos e predecessores; é mais perturbador ainda que ele possa saber e não se importar.
O politicamente correto tem um lado bom? Tem, sim, pois nos faz reexaminar atitudes, e isso sempre é útil. O problema é que, em todos os movimentos populares, os radicais lunáticos rapidamente saem da margem e vão para o centro; a cauda começa a balançar o cão. Para cada mulher ou homem que utiliza a ideia de maneira sensata para examinar nossas crenças, há vinte arruaceiros cujo motivo real é o desejo de poder sobre os outros, não menos arruaceiros por crerem que são antirracistas ou feministas ou o que quer que seja.
Um amigo meu que é professor de universidade descreve como, quando estudantes saíam de aulas de genética e boicotavam palestrantes visitantes cujos pontos de vista não coincidissem com sua ideologia, ele os convidou a seu estúdio para uma discussão e para assistir a um vídeo sobre os fatos reais. Meia dúzia de jovens em seu uniforme de jeans e camiseta entraram, se sentaram, ficaram em silêncio enquanto ele argumentava, mantiveram os olhos baixos enquanto ele exibia o vídeo e, como se fossem um bando, saíram do estúdio. Uma demonstração – e eles poderiam muito bem ter ficado chocados se tivessem ouvido isso – que espelhava o comportamento comunista, um “desabafo” que é uma representação visual das mentes fechadas de jovens ativistas comunistas.
Vemos o tempo todo na Grã-Bretanha, em câmaras municipais ou em conselhos diretores, diretoras ou professores sendo perseguidos por grupos e facções de caçadores de bruxas, usando as táticas mais sujas e cruéis. Eles afirmam que suas vítimas são racistas ou, de alguma maneira, reacionárias. Um apelo a autoridades maiores tem provado o tempo todo que cada uma dessas campanhas foi injusta.
Tenho certeza de que milhões de pessoas, depois de puxado o tapete do comunismo, procuram desesperadamente, e talvez sem perceber, por outro dogma.” (Tradução de João Lucas G. Fraga)
O texto foi publicado originalmente no sempre ótimo Blog do Orlando Tambosi (confira, aqui), sob o título “Doris Lessing foi a primeira a identificar a praga politicamente correta nas cinzas do comunismo”, com o seguinte comentário:
A escritora Doris Lessing (1919), que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2007, foi certamente a primeira pessoa a identificar as origens da nefasta doutrina politicamente correta, com seu igualmente nefasto relativismo. Foi também difícil encontrar o texto original – publicado logo depois da implosão da União Soviética –, agora gentilmente traduzido por um amigo (referência no final do texto).
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