domingo, 1 de maio de 2011

Totó das tetéias

LEILA JALUL

“Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação.” Isso aí aspeado é do Fernando Pessoa. Fiz questão de colocar essa afirmação logo na abertura de meu livro Suindara, talvez antevendo que as firulices que tenho rememoriado seriam postas em dúvida.

Li a palavra TRIBUZANA no texto do amigo Eurico, o homem de Tabuí. Era o mote que faltava para falar de mais uma, a do Totó das Tetéias. Faz parte do meu show, antes de começar a escrever, olhar-me no espelho onde não mais me enxergo (tenho problemas com as vistas), e, tal qual adolescente, ficar a procurar um cravinho aqui, uma espinita ali. Tudo na base do tateado. Cutucando, cutucando, as palavras pelas quais procuro, por dizerem, ao pé da letra, sobre o que quero escrever, vão surgindo, surgindo, até poder sentar e armar a escrita. Tenho em minha mente algumas palavras que não dispensarei em textos futuros. O som delas é bonito demais da conta. Espiem estas: osmose, medieval, emblemático, incipiente, circunspecto, arrebol, chauvinista, exógeno, caudaloso. Não são lindas? Tem outras também lindas e insinuantes, mas não quero desgastá-las nas citações. O segredo, segundo dizem, é a alma do negócio!

Totó das Tetéias era sargento do Batalhão de Engenharia, num distante pedaço da Amazônia. Moreno, olhos verdes, pele curtida de sol, era chegado numa tribuzana. Pronto! Aqui começa a história propriamente dita.

Sabedor de sua beleza, Totó tinha o péssimo habito da gabolice. No mercadão Marechal Rondon, todos os dias, juntava-se aos bruacos aposentados e de paus murchos, só para contar sua última aventura com as mulheres. Toda mulher que "comia" era representada num colar de botões que pendurava no pescoço. Não era um colar qualquer, com qualquer botão. Não. Tudo tinha ordem, cor e simbologia. Um botãozinho cor de rosa, por exemplo, queria dizer que pegou uma tetéia virgem. Um botão marrom, grande, queria dizer que pegou uma coroa desgastada e "arrombada", como fazia questão de enfatizar. E ali, no senadinho dos aposentados babões, ia explicando, com riqueza de detalhes, suas orgias com as belezuras dependuradas no pescoço.

 – Ó – dizia –, esse aqui é da Tonha Nepomuceno. Comi ontem.

Uma trabalheira danada. Estava para pedir uma talhadeira e um auxiliar para ajudar na tarefa. Com 19 anos, aqui por essa bandas, não existe mais esse negócio de virgem, mas era, era de verdade! Dureza, senhores! Dureza de vida!

– Ó – continuava –, esses dois aqui, representam mãe e filha. Foi na semana passada. Não tinha contado para vocês por achar que duvidariam. Esse é da Maria Lopes, que foi mulher daquele turco safado daquela merda de loja na ladeira de Nossa Senhora da Glória. E esse, pequenininho, é da Marilúcia, a filha dela com pai desconhecido. A menina não é do turco, de jeito e maneira. Se fosse, a deixaria pra depois, sabe como é? Quem tem aquilo, tem medo! Não é que tenha medo, mas, é melhor deixar quieto, principalmente com gente que a gente não conhece a ruindade. Estou certo?

A moçada aposentada ia ao delírio quando Totó descrevia umas posições quase tipo missão impossível. Vez por outra, Tenório do Boi levantava para verter água, não sem antes pedir:

– Agüenta um tempo, Totó, que volto num relâmpago!

Ninguém reparou nos olhos do Miguel, da banca de abacaxi. Eu, sim. Ninguém se aluiu que ele deu uma saidinha e voltou, sem nada falar. Eu, sim. Fazia de conta que não estava ouvindo nada, mas vi uma coisa estranha no brilho dos seus olhos. Coçava o bigode, alisava a faca, cortava uma rodela de abacaxi para a freguesa, vendia, recebia, passava troco e sentava.

Na volta de Tenório do Boi, devidamente mijado, a conversa de Totó das Tetéias voltou ao ponto onde havia sido interrompida.

– Pois é, primeiro dei um trato na Maria Lopes. A véia tava perfumadinha, gostosinha e arrumadinha. Teria ficado com ela a tarde inteira, mas, o diabo do cramulhão atentou e ela teve que sair, para entregar umas costuras. Fiquei deitado e aí, sem conter minha bicha quieta, lembrei da menina. Fui lá e...

Entrou nos detalhes, mas não vou aqui repetir. É nauseabundo.

Olhei pro Miguel, mas ele desviou e apenas puxou um fôlego comprido. Na época, a mania dos valentões era assistir Ringo e os dólares furados. Qualquer banana com vontade de ser macho vivia a repetir: My name is Ringo!

Terminada a conversa, já pelas 9 da manhã, Tenório pergunta se não tinha medo de bolinar menor.

Tenho nada! Se eu não comer, a terra come! Afinal, amigo Tenório, my name ís Totó das Tetéias.

Nisso, levanta-se Miguel. Pé ante pé, caminha até onde está o morenão e, de chofre, pergunta:

– Como é teu nome, cabra?

– Totó das Tetéias.

– Era.

Dois estalidos secos. Um tiro no peito e outro no pescoço. Totó caiu já do outro lado das trevas, arrodeado de botõezinhos e botõezões. Miguel acha o de Marilúcia, sopra, beija, limpa na perna da calça, guarda-o carinhosamente no bolso da camisa suada e sai, como se não tivesse acontecido nada.

Tudo foi verdade, e dou fé. Eu estava na cidade e fui a última freguesa que comprou dois abacaxis de puro mel, depois da prova servida na pontinha da peixeira afiada e colocada, com ternura, em minha boca.

(LEILA JALUL é escritora acreana, autora dos livros Suindara, Absinto Maior e Das Cobras, Meu Veneno.)

Um comentário:

  1. Eita, diacho! Coisa danada de boa ao saber que Totó das Tetéias foi eleito oara estar no blog do meu professor preferido. Conhecendo Totó, como conheci, é muito dinheiro gasto para pouca merenda!
    Estou quase sempre feliz, Juarez.
    Este texto é integrante do DAS COBRAS, MEU VENENO. Afora esta correção, o resto é só amor, amor, amor.
    Vou esperar a semana da Pátria Amada, Idolatrada, Brasil. Querm sabe aparecerás, correcto? Pensa na possibilidade. Aqui não é Nova York, mas está sempre correndo o risco de vir a ser.

    ResponderExcluir