O amor não é medida de perdão, nem o perdão medida de amor. Nem isso é um
jogo de palavras porque existe medida para tudo: o amor, o perdão, o jogo e as
palavras. E medida para o amor próprio ou a falta de! Tem até um filminho água
com açúcar aí dos anos 70, Love Story, famoso por uma fala da personagem: “Amar
é não ter jamais que pedir perdão.” Há amores inexigentes, ceguinhos de dar dó,
que mais não são que uma faceta do auto-engano. E auto-engano pode até fazer a
vida mais coloridinha, menos dolorosa e dolosa. Pode ser por aí que pensava o
escritor Nelson Rodrigues, quando disse pra gente não se apressar em perdoar
que misericórdia também corrompe. Vicia. Tira a relevância e o significado do
próprio perdão.
Pedir perdão – e perdoar a si mesmo – , então, é com certeza mais díficil
que oferecer a outra face, perdoar setenta vezes sete. Mais ainda que simular
compaixão para conquistar simpatias (ou vice-versa, convenientemente), para
fazer políticas de boa vizinhança, evitar constrangimentos ou arrogar-se uma
altivez de caráter mais inclemente do que a própria falta de perdão.
Nem o perdão é como uma bênção ou dádiva que só mesmo o gesto muito sublime
de quem perdoa poderia conceder. Quem perdoa pode até fazê-lo por orgulho, para
“dar um tapa de luvas”, pode fingir esquecer.
Perdoar é, de certo modo, o mesmo que cancelar. Por
exemplo, quando se perdoa a alguém uma dívida em dinheiro. No sentido bíblico,
é libertar a pessoa de seu erro ou pecado. Não se trata de desculpa nem
esquecimento, mas de uma remissão que devolve, à pessoa perdoada, a culpa sobre
seu comportamento, suas atitudes. Sua responsabilidade sobre um outro, novo
caminho a seguir para não reincidir no erro nem na mesma culpa.
Não que seja a culpa um erro, mas, sim, a falta de
culpa, de questionar-se e culpar-se para chegar ao perdão de si mesmo. E de
outros. Não apenas para aliviar-se ou livrar-se de uma punição. Uma punição que
de nada adianta se o indivíduo não reconhece a culpa, porque recusa ou é
incapaz de fazer autojulgamento.
Estamos no sábado de Páscoa, tempo de vida nova no
perdão. Assim o celebram, nessa Terra de Santa Cruz, com feriado prolongado,
ovos de chocolate, cerveja e churrasco, o perdão tantas vezes expiado na mea
culpa da boca pra fora, na conveniência ou na conivência simplesmente. Ou no
esquecimento – ingênuo, inconsciente ou voluntário – das nossas pequenas (e
grandes) contravenções cotidianas.
É Páscoa no Brasil, onde palavras como julgamento,
impunidade, culpa e perdão se confundem numa geleia amarga de maus juízos e na
falta de juízo. Na falta de juízes também. Não aqueles, togados, de quem se
espera as mais lídimas e redentoras sentenças sob o rótulo de Justiça dos
Tribunais. Não daqueles de quem se possa dizer ‘herói’ porque cumpriu seu
dever, como se viu na [quase] canonização em vida do ministro Joaquim Barbosa,
por uma respeitável parcela de brasileiros que apostam no triunfo da justiça
contra a impunidade, a ponto de pleitear-se a candidatura do juiz da Suprema
Corte à presidência da república. Como se fôra ele um messias, um salvador da
pátria. Como se de um homem dependesse o destino de todos. Seria preciso então
um Joaquim em cada esquina!
Joaquim, nome de origem hebraica, significa: o que
possui elevação. É exatamente elevação o que falta, quando a falta de juízo
sucumbe à alienação e à hipocrisia, à falta de esperança e de amor à verdade,
ao não reconhecimento da própria culpa, pessoal e instransferível, por todo
esse estado de coisas, sim, no país.
É de se pensar, se a maioria dos brasileiros
possuíssem a necessária elevação da sua consciência à capacidade de
autojulgamento e, portanto, de perdoar-se e redimir-se da sua culpa por suas
más escolhas. Ou porque, ainda que não cometam crimes ou contravenções, também
nada façam para impedi-los de acontecer e se repetir. A quantas poderiam elevar
esse país, com mais juízo, porque juízes de si próprios!
Quem é mais ladrão: o político que rouba ou o eleitor
que nele vota? Vale pensar que, há mais
de dois mil anos, entre o justo e o ladrão, sobre quem recaiu a escolha. Conta-se
até que um ladrão foi redimido no momento final da morte do Justo, crucificado
na representação viva de tão terrível destino humano. Conta-se. Embora, neste
mesmo momento, nada se tenha declarado daqueles que, por ação ou omissão, permitem
ao criminoso voltar sempre ao local do crime, ao delito. Nem seria preciso
dizê-lo, uma vez subentendida, no perdão, a culpa dos receptadores do fruto do
roubo, dos que aceitam a prática e a reincidência do crime porque tentam se
lavar da culpa de que “os fins justificam os meios”.
É de Martin Luther King a ideia de que “o perdão é um catalisador que cria a
ambiência necessária para uma nova partida, para um reinício." É redentora a ideia de perdão associado a uma ‘nova partida’. Como um
jogador que perde o lance, a chance do gol, não tem fair play e amarga uma
derrota. É uma perda enorme, para ele, o time, a torcida. Portanto, um perdão.
Mas que esteja disposto, o jogador, a recomeçar. E, desta vez, recomeçar melhor
porque reconheceu sua culpa.
Nisso, porém, é que o jogo
político no Brasil esbarra em degradantes perdões. A partida recomeça, com os
mesmos jogadores em campo atuando sem a menor culpa nem responsabilidade, sob a
euforia ou o apupo de torcedores que mais enganam a si mesmos do que são enganados
pelo juiz ladrão e, mais ainda, pelos seus idolatrados maus jogadores. Estes,
reeleitos, são novamente escalados para continuarem o jogo sujo. Não sentem
culpa, responsabilidade, remorso. Por isso, qualquer punição para eles não tem
objetivo, não lhes causa efeito moral ou prejuízo.
Sim, a questão é de ordem
ética, moral. Mas é também um tanto da falta de amor próprio que induz à
negativa da culpa e da responsabilidade por parte de consciências – se assim se
pode dizê-las – tão cheias de nada e vazias de tudo. Que induzem ao
comportamento delinquente na contrafação reeditada de um velho dito: quem vota
em ladrão tem cem anos de perdão. Assim é que grandes, irreparáveis perdas se
repetem, sem remissão. Porque nem eleitos nem eleitores se sentem culpados e
responsáveis, mas confortáveis com as punições inócuas que não lhes pesam,
porque destituídas da culpa e desse sentido de perdão – de perda – que os
incapacitam de recomeçar, fazer nova partida.
Assim perdemos
todos e não tem como se lhes perdoem. Porque, sim, eles sabem o que fazem.
Muito lindo!
ResponderExcluirMuito bom! UM abraço! Jeanne
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