quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Um para o outro

Chega a ser sem compaixão o jeito como ele a trata.
É um insensível.
Não sei como ela não percebe, quero dizer, se é que não percebe.
E se percebe, não sei como aguenta.
Há trinta e oito anos moram juntos.
Tudo bem que ele não deixa faltar nada em casa, faz todas as despesas, compra do bom e do melhor.
Ela não reclama, mas o jeito dele me dá a entender que a trata como uma escrava.
Sempre exigente, o café na hora certa, a toalha limpa, a roupa lavada e passada com amaciante, o feijão assim, o frango assado.
Passa o dedo sobre os móveis para ver se não tem poeira, eu sei porque ela deixou escapar um dia.
É o que eu sempre digo, a intimidade doméstica faz maneta qualquer relacionamento, a convivência cega. Por isso eu não troco minha independência por um lençol cheirando a confort nem por nada deste mundo.
Depois que se ganha a confiança, vai-se perdendo a vergonha, o respeito. E o resto.
Com o tempo companheirismo vira um jogo de empurra, um cabo de guerra. Se a mulher resiste, tudo cai na conta do cuidado materno, uma armadilha.
Um e outro, parece, vão virando um só. As coisas, o jeito, as manias de um e outro se misturando como partes indistinguíveis de um mutualismo sem individualidade em que nem sempre ou nunca ambas as partes se beneficiam. Acho que o lance é biológico, só pode. Às vezes vira bandalheira, já não se vive um para o outro, mas contra e apesar do outro.
Mas ela, noto, parece não se importar, ficou dependente.
Ou vivem assim por conveniência. Dele e dela.
Nele vejo que há mais amor próprio que o próprio amor, e ela nem desconfia.
Ontem mesmo eu vi: por causa de um telefonema, um recado que ela se esqueceu de anotar, ele a tratou como se dispensasse a empregada bocó que não sabe nem atender a um telefone.
Ela não ouviu, mas ele falou que ela estava ficando tapada, por pouco não perdeu um contato de negócios.
E olhe que ela faz tudo direitinho, a casa estava impecável, as coisas dele todas no lugar, armário e gavetas, cheiro de bom ar.
Claro, há muitas diferenças entre ambos; ele, profissional liberal, pós-graduação, inglês e espanhol fluentes; ela, dona de casa, a mãe da paciência.  
É verdade que ela anda meio esquecida, mas ele não releva o fato de que isso pode acontecer com qualquer um?
Não que ele tenha que venerá-la. Mas cá para nós, tanto tempo de convivência deveria reafirmar a tolerância que o amor inspira ou o amor que inspira a tolerância, vale a recíproca. Ninguém pode viver feliz se não há amor, se não há reciprocidade.
Ela se cala.
Ele, às vezes sai, bate a porta, nem desculpa pede.
Ou sai e não dá nenhuma satisfação. Passa o fim de semana fora.
Então ela vem aqui para o meu apartamento, faço um chá, trocamos conversa, ela me conta nas entrelinhas, sem nunca reclamar: ele é assim mesmo, agitado, nervoso. É o serviço, coitado, tanta responsabilidade.
Ela tudo compreende. Não acredito que seja tão resignada, mas irredutivelmente compreensiva porque tem a convicção de que este é seu papel de mulher.
Mas não acho justo.
Vivem juntos há tanto tempo, uma relação intensa. Para mim, pode passar o tempo que for as pessoas não mudam na sua essência. Se ele a trata assim é porque ela tem sua parcela de culpa. Talvez até goste e, mais do que aceite e compreenda, suporta porque o ama.
É isso, o amor.
Não é o que dizem? Só o amor suporta. 
O amor tudo suporta, vai amoldando as carências ao cotidiano, às expectativas, aos sonhos e desejos, realizados ou não, com todos os erros e acertos, omissões e culpas.
Pode ser também uma forma de defesa.
Dele e dela.
Não acredito que o sentimento entre ambos tenha se esgotado. Não faz sentido.
Acho é que cada um e todos nós, na convivência, na intimidade da vida doméstica, desenvolvemos uma estratégia de sobrevivência, talvez até não seja mais do que um jeito peculiar de amar. Que nem sempre é um jeito de demonstrar amor.
Outro dia os vi no supermercado.
Ela ia escolhendo as mercadorias, pacienciosa escolhendo, comparando os preços, checando a data de validade disso e daquiloutro.
Ele parecia estar bufando de tanta pressa ou de sei lá o quê. Um incômodo qualquer que assomava sua impaciência natural, ou, como ela dizia, ele é assim mesmo.
Passei pelos dois exatamente quando ele tomou o carrinho bruscamente das mãos dela, disse ‘olhaí, olhaí, não tá vendo?’, como se acompanhá-la nas compras fosse, mais que obrigação, um martírio, tanta rispidez só para impedir que ela esbarrasse numa pilha de enlatados em oferta. E tão brusco foi o gesto que quase ela tropeça e joga tudo no chão.
Ela me cumprimentou, sorrindo como se pedisse desculpas, por ela e por ele, diante daquele trivial constrangimento em presença de uma vizinha com a qual dividia, no máximo, suas receitas culinárias, algumas tardes e um chazinho de melissa que é sempre bom para relaxar, e a quem jamais se queixou dele.
De fato, dela nunca ouvi nenhuma queixa mesmo.
Sem drama, sem reclamação.
Sem qualquer ressentimento.
É impressionante.
Mas acho, e vou falar para ela, ah isso vou, que não está certo ele agir assim. Ele devia tratá-la com um pouco mais de delicadeza, de consideração. Pelo menos demonstrar.
Afinal de contas ela é mãe dele, pôxa.

2 comentários:

  1. Amor...amor... as vezes acho que o mundo gira em torno disso. e muitas vezes tenho medo dele.
    Super intenso o post... adorei!!!
    Bjos Meio Doido - Mirian Lane

    Depois veja com olhos de amigo e não de critico literário "bagagemcigana.blogspot.com" postagem do 7 de novembro de 2007 - com o titulo Estradas da Vida, uma viagem cheia de enigmas.

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  2. Mirian, e você "caladinha", hein?
    Mas é claro que eu vou ver com olhos de "cri-crítico" (rs...).
    Te beijo também.

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