domingo, 29 de abril de 2012

A felicidade interna do rei do Butão

Já não é de hoje que se promove o tal indicador de Felicidade Interna Bruta (FIB), segundo o qual a medição do progresso de uma comunidade ou nação não deve ficar restrita ao desenvolvimento econômico, mas deve avaliar o bem-estar psicológico, a saúde, o uso equilibrado do tempo, a vitalidade comunitária, educação, cultura, resiliência ecológica, governança e padrão de vida.
Acredito que pouca gente seja contra a sociedade perseguir individualmente tais objetivos, mas há dois perigosos elementos do discurso pelo FIB: (1) a prosperidade econômica é uma imposição maléfica que deve ser "sanada" e (2) é necessário promover uma mudança social em prol do bem-estar coletivo em parceria, também, com o governo.
Isso reforça o mito de que a economia é um corpo estranho e danoso para a sociedade. E que o mercado é formado por um grupo pequeno de grandes empresas que controlam tudo e a todos, e não por cada de um de nós, do pipoqueiro ao consumidor até os grandes empresários. O mercado somos nós.
O segundo ponto talvez seja mais grave por reforçar uma certa agenda política que faz uso da palavra coringa "social" com o objetivo de legitimar suas finalidades.
Como, no Brasil, movimento social é algo que está (ou quer estar) intimamente ligado ao governo, de preferência financiado pelo nosso dinheiro, temo que seus defensores virem mais um braço do partido no poder a defender o modelo estatista, que está na origem do horror contra o mercado e a iniciativa privada.
Talvez soe bonito acusar o crescimento econômico pelos males do mundo e pelos problemas que inviabilizam ou destroem aqueles nove pontos descritos pelo indicador.
Mas pergunte a cada uma das pessoas que vivem nas diversas escalas da pobreza para saber se elas conseguem perseguir tais objetivos sem, antes, prosperar economicamente.
Atribuir ao Estado responsabilidades que são individuais faz com que a elite política no poder acredite realmente estar cumprindo uma nobre missão em nome de bem-comum, do coletivo, nem que para isso seja preciso esmagar a sociedade. Não se engane: a tutela estatal é uma espada de Dâmocles.
Se levarmos em conta o que acontece quando o governo desenvolve novas funções a partir da expropriação das riquezas que produzimos (no Brasil, trabalhamos de janeiro a maio só para pagar tributos), certamente a Felicidade Interna Bruta terá que alterar seu nome para outro bem menos alegre.
Por uma dessas ironias da história, a FIB foi criada em 1972 por Jigme Singya Wangchuck, rei daquele pequeno país chamado Butão.
Essa nação aparece no 141º lugar (de 187) do Índice de Desenvolvimento Humano 2011 da ONU, em 142º lugar (de 183 países) na lista do Doing Business de 2012, que mede a facilidade de fazer negócios, e em 111º lugar (de 179 países) na lista do Índice de Liberdade Econômica 2012 da Heritage Foundation (qualificado como país não livre, como o Brasil).
Certamente, a Felicidade Interna Bruta do rei de Butão era mais elevada do que a dos seus súditos.
(*Bruno Garschagen é mestre em ciência política e relações internacionais pela Universidade Católica de Portugal.)

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Breve lição de liderança

A menina, Natalie Gilbert, 13 anos, iria cantar o Star Spangled Banner, hino dos Estados Unidos, no jogo da NBA, para um público de 20 mil pessoas.
Afinada, mas sozinha diante da multidão, ela se emociona, vacila, esquece a letra.
A multidão ameaça uma vaia.
Então surge o técnico Mo Cheeks, do Trail Blazers. Vem para junto da menina e começa a cantar, incentiva e traz o público junto.
Uma atitude de liderança, no momento certo, faz toda a diferença. Veja o vídeo: 
 
A lição, ligeira, não é nova.
Mas útil, sempre.
Oportuna neste Brasil atual, onde falsos líderes populistas mobilizam poderes e recursos para perpetrarem suas maracutaias no esforço de livrar a cara de bandidos-companheiros-cúmplices enrascados até o talo com a Justitia por seus crimes de corrupção.
Tudo em nome de um projeto de poder pessoal, partidário, contra o progresso e a ordem de uma Nação que a tudo assiste, basbaque, guardando vaias apenas para os momentos de catarse alienante e escapista das “torcidas organizadas” à esquerda, à direita e à margem da derrocada de um país em rota de colisão contra si mesmo.

A falência múltipla dos órgãos públicos

Arnaldo Jabour (publicado no Jornal O Globo, 17/04/12)
Os corruptos ajudam-nos a descobrir o País. Há sete anos, Roberto Jefferson nos abriu a cortina do mensalão. Agora, com a dupla personalidade de Demóstenes Torres, descortinamos rios e florestas e a imensa paisagem de Cachoeira. Jefferson teve uma importância ideológica.
Cachoeira é uma inovação sociológica. Cachoeira é uma aula magna de ciência política sobre o Sistema do País. Vamos aprender muito com essa crise. É um esplendoroso universo de fatos, de gestos, de caras, de palavras que eclodiram diante de nossos olhos nas últimas semanas. Meu Deus, que riqueza, que profusão de cores e ritmos em nossa consciência política! Que fartura de novidades da sordidez social, tão fecunda quanto a beleza de nossas matas, cachoeiras, várzeas e flores.
Roberto Jefferson denunciou os bolchevistas no poder, os corruptos que roubavam por “bons motivos”, pelo “bem do povo”, na base dos “fins que justificam os meios”. E, assim, defenestrou a gangue de netinhos de Lenin que cercavam o Lula que, com sua imensa sorte, se livrou dos mandachuvas que o dominavam. Cachoeira é uma alegoria viva do patrimonialismo, a desgraça secular que devasta a história de nosso País. Sarney também seria ‘didático’, mas nada gruda nele, em seu terno de ‘teflon’; no entanto, quem estudasse sua vida entenderia o retrato perfeito do atraso brasileiro dos últimos 50 anos.
Cachoeira é a verdade brasileira explícita, é o retrato do adultério permanente entre a coisa pública e privada, aperfeiçoado nos últimos dez anos, graças à maior invenção de Lula: a ‘ingovernabilidade’.
Cachoeira é um acidente que rompeu a lisa aparência da ‘normalidade’ oficial do País. Sempre soubemos que os negócios entre governo e iniciativa privada vêm envenenados pelas eternas malandragens: invenção de despesas inúteis (como as lanchas do Ministério da Pesca), superfaturamento de compras, divisão de propinas, enfrentamento descarado de flagrantes, porque perder a dignidade vale a pena, se a grana for boa, cabeça erguida negando tudo, uns meses de humilhações ignoradas pelo cinismo e pela confiança de que a Justiça cega, surda e muda vai salvá-los. De resto, com a grana na ‘cumbuca’, as feridas cicatrizam logo.
O governo do PT desmoralizou o escândalo e Cachoeira é o monumento que Lula esculpiu. Lula inventou a ingovernabilidade em seu proveito pessoal. Não foi nem por estratégia política por um fim ‘maior’ – foi só para ele.
Achávamos a corrupção uma exceção, um pecado, mas hoje vemos que o PT transformou a corrupção em uma forma de governo, em um instrumento de trabalho. A corrupção pública e a privada é muito mais grave e lesiva que o tráfico de drogas.
Lula teve a esperteza de usar nossa anomalia secular em projeto de governo. Essa foi a realização mais profunda do governo Lula: o escancaramento didático do patrimonialismo burguês e o desenho de um novo e ‘peronista’ patrimonialismo de Estado.
Quando o paladino da moralidade Demóstenes ficou nu, foi uma mão na roda para dezenas de ladrões que moram no Congresso: “Se ele também rouba, vamos usá-lo como um Omo, um sabão em pó para nos lavar, vamos nos esconder atrás dele, vamos expor nosso escândalo por seu comportamento e, assim, seremos esquecidos!”
Os maiores assaltantes se horrorizaram, com boquinha de nojo e olhos em alvo: “Meu Deus… como ele pôde fazer isso?…”
Usam-no como um oportuno bode expiatório, mas ele é mais um ‘boi de piranha’ tardio, que vai na frente para a boiada se lavar atrás.
Demóstenes foi uma isca. O PT inventou a isca e foi o primeiro a mordê-la. “Otimo!” – berrou o famoso estalinista Rui Falcão – “Agora vamos revelar a farsa do mensalão!” – no mesmo tom em que o assassino iraniano disse que não houve holocausto. “Não houve o mensalão; foi a mídia que inventou, porque está comprada pela oposição!” Os neototalitários não desistem da repressão à imprensa democrática…
E foi o Lula que estimulou a CPI, mesmo prejudicando o governo de Dilma, que ele usa como faxineira também das performances midiáticas que cometeu em seu governo. Dilma está aborrecida. Ela não concorda que as investigações possam servir para que o Partido se vingue dos meios de comunicação e não quer paralisar o Congresso. Mas Lula não liga. “Ela que se vire…” – ele pensa em seu egoísmo, secretamente, até querendo que ela se dane, para ele voltar em 14. Agora, todo mundo está com medo, além da presidente. O PT está receoso – talvez vagamente arrependido. Pode voltar tudo: aloprados, caixas 2 falsas, a volta de Jefferson, Celso Daniel, tantas coisinhas miúdas… A CPI é um poço sem fundo. O PMDB, liderado pelo comandante do atraso Sarney, também está com medo. A velha raposa foi contra, pois sabe que merda não tem bússola e pode espirrar neles. Vejam o pânico de presidir o Conselho de Ética, conselho que tem membros com graves problema na Justiça. Se bem que é maravilhoso o povo saber que Renan, Juca, Humberto Alves, Gim Argello, Collor serão os ‘catões’, os puros defensores da decência… Não é sublime tudo isso? Nunca antes, em nossa história, alianças tão espúrias tiveram o condão de nos ensinar tanto sobre o Brasil. A cada dia nos tornamos mais sábios, mais cultos sobre essa grande chácara de oligarquias. E eu estou otimista. Acho que tudo que ocorre vai nos ensinar muito. Há qualquer coisa de novo nessa imundície. O mundo atual demanda um pouco mais de decência política. Cachoeira, Jefferson, Durval Barbosa nos ensinam muito. Estamos progredindo, pois aparece mais a secular engrenagem latrinária que funciona abaixo dos esgotos da pátria. A verdade está nos intestinos da política.
Mas, o País é tão frágil, tão dependente de acasos, que vivemos com o suspense do julgamento do mensalão pelo STF.
Se o ministro Ricardo Lewandowski não terminar sua lenta leitura do processo, nada acontecerá e a Justiça estará desmoralizada para sempre.

domingo, 15 de abril de 2012

As coisas transitórias

Irmão,
nada é eterno, nada sobrevive.
Recorda isto, e alegra-te.
A nossa vida
não é só a carga dos anos.
A nossa vereda
não é só o caminho interminável.
Nenhum poeta tem o dever
de cantar a antiga canção.
A flor murcha e morre;
mas aquele que a leva
não deve chorá-la sempre...
Irmão, recorda isto, e alegra-te.
Chegará um silêncio absoluto,
e, então, a música será perfeita.
A vida inclinar-se-á ao poente
para afogar-se em sombras doiradas.
O amor há-de ser chamado do seu jogo
para beber o sofrimento
e subir ao céu das lágrimas ...
Irmão, recorda isto, e alegra-te.
Apanhemos, no ar, as nossas flores,
não no-las arrebate o vento que passa.
Arde-nos o sangue e brilham nossos olhos
roubando beijos que murchariam
se os esquecêssemos.
É ânsia a nossa vida
e força o nosso desejo,
porque o tempo toca a finados.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.
Não podemos, num momento, abraçar as coisas,
parti-las e atirá-las ao chão.
Passam rápidas as horas,
com os sonhos debaixo do manto.
A vida, infindável para o trabalho
e para o fastio,
dá-nos apenas um dia para o amor.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.
Sabe-nos bem a beleza
porque a sua dança volúvel
é o ritmo das nossas vidas.
Gostamos da sabedoria
porque não temos sempre de a acabar.
No eterno tudo está feito e concluído,
mas as flores da ilusão terrena
são eternamente frescas,
por causa da morte.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.
(Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera")

Deep Forest - Sweet Lullaby

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O STF e o aborto ou a pressa de julgar inocentes. E os culpados?

Por 8 votos a 2 – ampla maioria, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu autorizar o aborto de fetos sem cérebro.
Não deixo em momento algum de considerar (mas não vou adentrar a questão) o sofrimento das famílias, de pai e mãe que acompanham nascimento e morte desses seres.
Como dizem as filósofas Ceguinhas de Campina Grande, a pessoa é para o que nasce. Assim como cada um e todos nascem para morrer. Seja logo após o parto, seja após um século de vida.
Assim como cada um, segundo aquele poema da Verdade, de Drummond, há de optar – e de responder – conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Sua opção.
Impressionante é a celeridade do STF para julgar aqueles já condenados inocentes que, óbvio, não têm como se defender. Enquanto em passo de lesma lerda se adia a condenação dos mui vivos réus do “mensalão” – aquela sofisticada organização criminosa, segundo a Procuradoria Geral da República –, em uma gestação prolongada que, parece, vai dar na prescrição. E, portanto, na impunidade.
E por aí vai-se, abortando-se a honestidade, a transparência da vida e da administração pública, onde uma espécie de anencefalia ética, moral, do pior tipo, vai gerando aberrações intocáveis – para as quais o crime compensa e premia.
Mas quem espera ver o processo do mensalão julgado com a mesma presteza com que se decidiu pelo aborto de anencéfalos, pode corroborar o empenho dos ministros e enviar uma mensagem ao Supremo Tribunal Federal, para que julguem os bandidos mensaleiros ainda neste semestre.
Aí vão os endereços eletrônicos dos 11 ministros: 
Celso de Mello – mcelso@stf.gov.br
Marco Aurélio de Mello – marcoaurelio@stf.gov.br
Gilmar Mendes – mgilmar@stf.gov.br
Cezar Peluso – carlak@stf.gov.br
Carlos Britto – gcarlosbritto@stf.gov.br
Joaquim Barbosa – gabminjoaquim@stf.gov.br
Ricardo Lewandowski – gabinete-lewandowski@stf.gov.br
Carmen Lúcia – anavt@stf.gov.br
Dias Toffoli – gabmtoffoli@stf.jus.br
Rosa Weber – audiencias-minrosaweber@stf.jus.br ou convites-minrosaweber@stf.jus.br

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Enigmas?

Roberto Damatta (publicado no Jornal O Estado de S.Paulo, 11/04/12)
Demóstenes perdeu o pai aos 7 anos. Sua herança foi roubada por tutores. Abriu um processo, os ladrões recorreram, ele perdeu. Menino, Demóstenes assistiu a um julgamento no qual um orador brilhante mudou a opinião pública. Demóstenes invejou sua glória e ficou impressionado com o poder da palavra. Pensou, então, em ser um grande orador, mas o sonho parecia impossível, pois, como o rei George VI da vida e da fita, era gago. Corajoso, Demóstenes foi à luta. Curou a gaguez declamando poemas diante do mar, contra o vento; forçando-se a falar (como fazem alguns políticos) com pedras na boca. Graças a esse extenuante treinamento, Demóstenes foi o maior orador da Grécia.
Como um democrata, dedicou sua vida à defesa de uma Atenas ameaçada por Filipe II, da Macedônia, pai do não menos hollywoodiano Alexandre, o Grande. Demóstenes escreveu inúmeros discursos e alguns roteiros com o objetivo de conclamar os atenienses, mas Filipe II venceu.
No ano 335 a.C., Demóstenes foi condenado por facilitar a fuga de um ministro de Alexandre de Atenas. Recebeu uma boa grana, mas como não estava em Brasília, foi preso mas conseguiu fugir, exilando-se em Atenas por um longo período. Na Grécia antiga, os oradores não tinham imunidade.
Após a morte de Alexandre, Demóstenes volta do exílio e retoma a vida pública. Alia-se imediatamente à revolta contra o ditador macedônio Antípatro, mas perde. Exila-se no templo de Poseidon, faz algumas palestras a peso de ouro para alguns mercadores, mas vendo-se cercado pelos soldados do inimigo, Demóstenes termina com a própria vida tomando veneno.
Em 322 antes de Cristo, os políticos se suicidavam quando cometiam malfeitos. No Brasil, apenas Vargas perpetrou o gesto extremo de um suicídio de honra. Neste mundo cada vez mais ambíguo no qual tentamos viver, essa sensibilidade com a moral coletiva só tem ocorrido no Japão, que os políticos e os financistas de Wall Street dizem ser um país exótico...
John Winthorp (1588-1649) chegou à América com a intenção de construir uma comunidade utópica – uma nova Jerusalém numa "nova" Inglaterra. Aprendi isso com o Robert Bellah do livro Habits of the Heart (Hábitos do Coração). Nele, há uma recapitulação desse messianismo fundado em princípios mais do que em santos e pessoas, como é o caso ibérico e brasileiro.
John Winthrop foi o primeiro governador eleito da Colônia da Baía de Massachusetts. Seu objetivo não era enriquecer, mas criar uma comunidade na qual a prosperidade sinalizasse aprovação divina e, por isso, o seu exemplo como homem público merece ser relembrado nestes tempos de Brasil que se torna uma sociedade de massa, mas que ainda tem uma vida pública entupida de leis, mas carente de ética.
Durante os seus 12 mandatos como governador, Winthrop foi exemplar e inovador. Moderação e um bom senso extraordinário caracterizam sua administração. Conta-se que durante um inverno particularmente longo e rigoroso a lenha de Winthrop era roubada por um vizinho pobre. O governador mandou chamá-lo e declarou que, devido à severidade do inverno e de suas necessidades, ele tinha permissão para apanhar toda a lenha que precisasse durante aquela temporada. Com isso, dizia Winthrop a seus amigos, ele havia curado o homem do roubo.
Alguns dos nossos políticos têm dupla personalidade, mas como eu tentei mostrar em Carnavais, Malandros e Heróis, o Brasil tem uma duplicidade de raiz. Ele é feito de leis universais (válidas para todos) mas, tal como o barqueiro napolitano de Max Weber, nós não podemos cobrar dos parentes, cobramos menos dos amigos, cobramos demasiado dos desconhecidos, e cobramos estupidamente (com a devida comissão para pessoas e partido) quando o passageiro é o governo. Dois pesos e medidas levados ao extremo acabam em despotismo (os nossos fazem apenas "malfeitos" e são blindados); destitui de ética a impessoalidade do que é público. Até hoje não admitimos que um "homem público" simplesmente não tenha "vida privada" porque ele não é gerente de coisas sem dono; é – isso sim – um administrador do que pertence à sua coletividade. É falsa essa apropriação do público pelo privado, porque os eleitos não são donos de coisa nenhuma; são simplesmente responsáveis pelo que é de todos. O problema é que vemos como anomalia um traço de um Brasil que até hoje não quer saber se é um país de família, um clube de compadres e amigos –   ou um sistema de instituições públicas. O governador Winthrop não leu Hirschman, mas soube domar a paixão do roubo, transformando-a em interesse. Aceitou a necessidade e, regulando o furto, tornou o oculto em algo aberto, domesticável e virtuoso. Nós preferimos legislar negativamente e assim transformamos costumes em crime.
É impossível deter as Cachoeiras de desejos, sobretudo quando são proibidos por lei, mas aceitos placidamente pelos costumes da terra, como a amizade e a malandragem. Essas coisas que viciam, como disse um deputado mineiro que construiu um castelo feudal. E, mais que isso, a certeza de que o governo tem muito mais do que pode administrar. Principalmente quando se sabe que aquilo que é de todos (ainda) não é de ninguém. Como prender bandidos num país onde mentir em causa própria é um princípio constitutivo do sistema legal?
(ROBERTO DA MATTA é antropólogo, autor dos livros Carnavais, Malandros e Heróis, Torre de Babel e O que faz o brasil, Brasil?.)

sábado, 7 de abril de 2012

Poema para Iludir a Vida



Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.
(Fernando Namora, in "Mar de Sargaços")

domingo, 1 de abril de 2012

A Mentira é a Base da Civilização Moderna

É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens atuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira econômica, na mentira matrimonial, etc. A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Atualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súditos desta onipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o cetro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc.
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo Antônio, os Gavroches, e os moujiks da Rússia nos tempos de hoje. Por que é que só a gente sincera, inculta e bárbara sabe realizar a obra que o gênio anuncia? Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo Antônio? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens moujiks? A enxada será irmã da pena? A fome de pão paracer-se-à com a fome de luz?...
(Teixeira de Pascoaes, escritor português, in “A Saudade e o Saudosismo”.)

Perguntas que Você Nunca Deve Fazer a Escritores

Por DORIS LESSING
New York Times, Editorial em 26 de Junho de 1992
 “EMBORA tenhamos visto a aparente morte do comunismo, modos de pensar que nasceram no comunismo ou foram fortalecidos pelo comunismo ainda governam nossas vidas. Mas nem todos eles são imediatamente perceptíveis como sendo um legado do comunismo. O exemplo mais evidente é o politicamente correto.
Primeira questão: a linguagem. Não é novidade a ideia de que o comunismo degradou a linguagem, e, com a linguagem, o pensamento. Há um jargão comunista reconhecível em cada frase. Pouca gente na Europa não fez piadas, em seu tempo, sobre “passos concretos”, “contradições”, “a interpenetração de opostos”, e o resto.
A primeira vez em que eu vi que slogans destruidores de mentes tinham a capacidade de criar asas e voarem para longe de suas origens foi nos anos 50, quando li um artigo no Times de Londres e constatei que estavam sendo utilizados. “A manifestação no Sábado passado foi prova irrefutável de que a situação concreta...” Palavras confinadas à esquerda como se fossem animais encurralados passaram para o uso geral. Junto com elas, vieram as ideias. Pode-se ler artigos inteiros na imprensa conservadora e liberal que foram marxistas sem que os escritores soubessem. Mas há um aspecto dessa herança que é muito mais difícil de perceber.
Até mesmo há cinco ou seis anos, o Izvestia, o Pravda e vários outros jornais comunistas eram escritos em uma linguagem que parecia planejada para ocupar o maior espaço possível sem, no entanto, dizer qualquer coisa. Porque, claro, era perigoso tomar posições que precisassem ser defendidas. Agora todos esses jornais redescobriram o uso da língua. Mas a herança de uma língua morta e vazia pode ser encontrada, atualmente, nos meios acadêmicos, particularmente em algumas áreas da sociologia e da psicologia.
Um jovem amigo meu, do Iêmen do Norte, economizou todo o dinheiro que tinha para viajar à Grã-Bretanha para estudar na área da sociologia que ensina a difundir os conhecimentos ocidentais a nativos sem conhecimento. Pedi para ver seu material de estudo e ele me mostrou uma verdadeira bíblia, tão mal escrita e com um jargão tão feio e vazio que era difícil de entender. Havia centenas de páginas, mas ideias expostas podiam ser facilmente resumidas a dez.
Sim, eu sei que o ofuscamento do meio acadêmico não começou com o comunismo – como Swift, por exemplo, nos informa – mas o pedantismo e o excesso de palavras do comunismo têm suas raízes no meio acadêmico alemão. E agora isso se tornou uma epidemia que contamina o mundo inteiro.
É um dos paradoxos de nosso tempo o fato de que ideias capazes de transformar nossas sociedades, cheias de visões sobre como o animal humano, de fato, se comporta e pensa, são frequentemente apresentadas num linguajar ilegível.
O segundo ponto é ligado ao primeiro. Ideias poderosas que afetam nosso comportamento podem ser visíveis até em poucas frases, ou até mesmo em uma frase ou um chavão. Todos os escritores ouvem essas perguntas de quem os entrevista: “Você acha que um escritor deveria...?” “Escritores deviam...?” A pergunta sempre tem a ver com uma posição política, e observe que a suposição por trás das palavras é de que todos os escritores devem fazer a mesma coisa, seja o que for. As frases “Um escritor deveria...?” “Escritores deviam...?” têm uma longa história que parece desconhecida para as pessoas que as utilizam tão arbitrariamente. Outra frase é “engajamento”, tão em voga em nossos dias. Fulano de tal é um escritor engajado?
Um sucessor de “engajamento” é “conscientizar.” Trata-se de uma faca de dois gumes. As pessoas a serem conscientizadas podem receber informações de que desesperadamente careçam e precisem, e podem receber o apoio moral que necessitem. Mas o processo quase sempre significa que o pupilo receberá somente a propaganda que o instrutor aprove. “Conscientizar”, como “comprometimento” e “politicamente correto”, é uma continuação da velha cantilena das diretrizes partidárias.
Um modo de pensar bastante comum na crítica literária não é visto como consequência do comunismo, embora o seja. Todos os escritores têm a experiência de ouvir que um conto ou história é “sobre” alguma coisa qualquer. Escrevi uma história, “O Quinto Filho,” que foi, ao mesmo tempo, definido como sendo sobre o problema palestino, pesquisas genéticas, feminismo, antissemitismo e por aí vai.
Uma jornalista da França entrou na minha sala e, antes mesmo de se sentar, disse: “Claro que "O Quinto Filho” é sobre a AIDS.”
É o tipo de coisa que interrompe qualquer conversa, eu lhe garanto. Mas o que é interessante é o hábito mental que leva a analisar um trabalho literário desse modo. Se você disser: “Se eu quisesse escrever sobre a AIDS ou o problema palestino, eu teria escrito um panfleto”, você normalmente recebe olhares embasbacados. A noção de que um trabalho imaginativo tenha de, “na verdade”, ser sobre algum problema é, novamente, herança do realismo socialista. Escrever uma história pela história é frívolo, sem falar em reacionário.
A exigência de que histórias devam ser “sobre” algo é típica do pensamento comunista e, mais longinquamente, do pensamento religioso, com sua vocação para livros de autoaprimoramento tão simplórios quanto suas mensagens.
A expressão “politicamente correto” nasceu quando o comunismo entrava em colapso. Não acho que foi por acaso. Eu não estou sugerindo que a tocha do comunismo tenha sido passada para os politicamente corretos. Estou sugerindo que os hábitos mentais foram absorvidos, frequentemente sem que fosse percebidos.
Obviamente há algo bastante atraente sobre dizer aos outros o que fazer: Estou colocando isso dessa forma infantil ao invés de numa linguagem mais intelectual porque vejo isso como um comportamento infantil. As artes em geral são sempre imprevisíveis, rebeldes e tendem a ser, em sua melhor forma, desconfortáveis. A literatura, em particular, sempre inspirou os comitês de Congressos, os Zhdanovs da vida, os arroubos moralizantes, e, na pior hipótese, a persecução. É perturbador que o politicamente correto não pareça saber quais são seus exemplos e predecessores; é mais perturbador ainda que ele possa saber e não se importar.
O politicamente correto tem um lado bom? Tem, sim, pois nos faz reexaminar atitudes, e isso sempre é útil. O problema é que, em todos os movimentos populares, os radicais lunáticos rapidamente saem da margem e vão para o centro; a cauda começa a balançar o cão. Para cada mulher ou homem que utiliza a ideia de maneira sensata para examinar nossas crenças, há vinte arruaceiros cujo motivo real é o desejo de poder sobre os outros, não menos arruaceiros por crerem que são antirracistas ou feministas ou o que quer que seja.
Um amigo meu que é professor de universidade descreve como, quando estudantes saíam de aulas de genética e boicotavam palestrantes visitantes cujos pontos de vista não coincidissem com sua ideologia, ele os convidou a seu estúdio para uma discussão e para assistir a um vídeo sobre os fatos reais. Meia dúzia de jovens em seu uniforme de jeans e camiseta entraram, se sentaram, ficaram em silêncio enquanto ele argumentava, mantiveram os olhos baixos enquanto ele exibia o vídeo e, como se fossem um bando, saíram do estúdio. Uma demonstração – e eles poderiam muito bem ter ficado chocados se tivessem ouvido isso – que espelhava o comportamento comunista, um “desabafo” que é uma representação visual das mentes fechadas de jovens ativistas comunistas.
Vemos o tempo todo na Grã-Bretanha, em câmaras municipais ou em conselhos diretores, diretoras ou professores sendo perseguidos por grupos e facções de caçadores de bruxas, usando as táticas mais sujas e cruéis. Eles afirmam que suas vítimas são racistas ou, de alguma maneira, reacionárias. Um apelo a autoridades maiores tem provado o tempo todo que cada uma dessas campanhas foi injusta.
Tenho certeza de que milhões de pessoas, depois de puxado o tapete do comunismo, procuram desesperadamente, e talvez sem perceber, por outro dogma.” (Tradução de João Lucas G. Fraga)
O texto foi publicado originalmente no sempre ótimo Blog do Orlando Tambosi (confira, aqui), sob o título “Doris Lessing foi a primeira a identificar a praga politicamente correta nas cinzas do comunismo”, com o seguinte comentário:
A escritora Doris Lessing (1919), que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2007, foi certamente a primeira pessoa a identificar as origens da nefasta doutrina politicamente correta, com seu igualmente nefasto relativismo. Foi também difícil encontrar o texto original – publicado logo depois da implosão da União Soviética –, agora gentilmente traduzido por um amigo (referência no final do texto).